Crítica: Retrato de uma Jovem em Chamas (Portrait de la jeune fille en feu)

Céline Sciamma é conhecida pelo excelente “Tomboy” e pelo subestimado “Garotas”, mas é em Retrato de uma Jovem em Chamas que se mostra impecável, tanto como diretora quanto como roteirista, tendo com este filme levado pra casa o prêmio de Melhor Roteiro do Festival de Cannes em 2019. A francesa me faz continuar dando chances ao cinema francês contemporâneo, que pra mim é demasiadamente superestimado e, por isso, torna muitas de suas produções cansativas. Mas, citando Ryan Fields, que faz parte do grupo de pessoas que torcem bastante o nariz para essa galera: “o pior e o melhor filme são franceses.” Para meu total deleite, esse é um caso dos que deram certo e que me fizeram ir pelas ruas com o corpo flutuando, honrada em ser tão tocada pela arte – e me fazendo pensar se serei capaz de traduzir tudo em palavras nessa crítica.

Sciamma não simplesmente traz à luz uma história que representa, finalmente, a forma que lésbicas vivenciavam a opressão de gênero na modernidade; ela traz a fogo. O filme decide por trabalhar com esse elemento forte, elegante e tão simbólico quando o assunto é um amor incompreendido e inaceitável, amarrado às frias mãos masculinas que, mais que nunca, dominavam os corpos femininos direta ou indiretamente. Sensível e atenta que só, ela deixa tais mãos invisíveis; o protagonismo é todo delas, das incríveis Noémie Merlant (como Marianne) e Adèle Haenel (como Héloïse), abrindo espaço ainda pra Luàna Bajrami (como Sophie) que, sutil, mostra ainda mais uma face do ser mulher no século XVIII.

Um dos primeiros planos do filme é essa obra de arte. Fogo e mais fogo cercam e começam a consumir Marianne.

Uma história de amor entre mulheres – que nas mãos de outros diretores pode se perder e virar fetiche (vulgo “Azul é a Cor Mais Quente) – aqui é levada a sério e transcende, inclusive, a história de amor em si. Marianne deve pintar Héloïse, que havia se recusado a posar para outro pintor e mantêm a decisão-protesto, já que tal quadro representa sua entrega a um desconhecido futuro marido. Apenas quando receber a imagem da jovem a união pode ser concebida – o que muito diz sobre o que era esperado da esposa ideal: beleza e silêncio, como o retrato pintado mostraria. Marianne é seu algoz; ela sabe do peso daquele que deveria ser tão somente mais um trabalho encomendado, mas decide por seguir pintando a jovem em segredo, disfarçada de dama de companhia.

Ambas partilham da consciência, mas também impotência, de saber-se mulher. Uma pintora que vive à sombra do pai, prestigiado pela pintura, que por essa sombra se evade de algumas obrigações femininas da época. Uma inconformada jovem que não vê no casamento arranjado salvação, mas, sim, ruína. Entre e dentro das duas, o fogo em combustão e a liberdade que lhes foge, cada uma a seu modo, da própria vida. Portanto, o erotismo aqui é o de menos – e só consegue ser tão impactante pela belíssima e sedutora construção desse encontro, dispensando recursos apelativos. Tal é a maestria ao conduzir o encontro das duas até seu ápice que a cena mais excitante do filme inteiro é um beijo, que absorveu tanto ao longo do caminho que deixou de ser tão somente um beijo.

Por fim, o filme trata de uma relação que, como todas, tem prazo de validade, por mais que desejemos o contrário. Meu pai uma vez disse que nunca temos certeza de que passamos tempo suficiente com quem amamos, e sem querer aquelas palavras formaram um sábio ensinamento pra mim: nunca é o suficiente. Resta olhar o amor com candura e entender que, além dele, o que temos na vida inteira são mesmo as memórias, por sermos feitos de uma coleção de passados.

A fogueira se apaga e as memórias ficam queimadas nos corpos das duas. Dentro das possibilidades que tinham, o amor, ainda que velado, por aqueles dias já era de uma grandiosidade e revolução revigorantes. A ideia de não passar uma vida sem senti-lo foi pra longe. O alívio por se terem como confidências e a sorte por terem partilhado o extraordinário. Mesmo que pra nunca mais. Em cenas finais absolutamente hipnotizantes, o filme nos relembra de um privilégio. O privilégio de ouvir uma sinfonia, de ser tomada pelos tempos e variações de cada instrumento, e de ser levada pra longe e trazida de volta até que finde; e a compreensão que seu fim atesta que você escuta. E que indescritível honra é escutar quando te exigem surdo e mudo.

“Burn, burn, burn…like fabulous yellow roman candles exploding like spiders across the stars” – Jack Kerouac

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