Crítica: Açúcar

A primeira cena de Açúcar impressiona. Uma reluzente vela vermelha navega em um canavial como se este fosse um mar. Dentro do veleiro, Bethânia (Maeve Jinkings) volta para a velha propriedade de sua família na Zona da Mata, o agora decadente engenho de cana-de-açúcar Wanderley. Enquanto os trabalhadores se organizam para retomar sua cultura negra oprimida pelos séculos de exploração dos brancos poderosos e tomar posse de pedaços da terra, Bethânia terá de se entender com velhos preconceitos, novas realidades e um futuro incerto.

O longa de Sérgio Oliveira e Renata Pinheiro reforça o tempo todo o poder desta metáfora inicial de um veleiro que navega em um canavial. Por um lado, ele é extremamente arraigado no real, telúrico, com suas discussões acerca de exploração, preconceito, racismo e de um Brasil que ainda vaga entre a Casa Grande a Senzala. Por outro, os diretores, também responsáveis pelo intrincado e inovador roteiro, abrem as velas para singrarem águas caras à ficção latino-americana: o realismo mágico, o fantástico. É nesses dois polos que a protagonista e o filme oscilarão. Ainda que o resultado final não seja primoroso, é inegável que os diretores atingiram uma marca única e interessante para a nossa cinematografia.

De cara, Açúcar é um símbolo contundente para um certo Brasil. Ao eleger um engenho como cenário, marca expressiva da pujança colonial e da decadência de um mundo, a produção deixa claro o seu posicionamento de querer estabelecer uma reflexão sobre nossas raízes. A própria relação entre as personagens, ainda que as atuações do elenco se mostrem oscilantes, com exceção de Maeve Jinkings, cuja concepção de Bethânia é feita com total consciência o tempo todo, deixa essa reflexão bastante clara.

Esse Brasil das raízes se desloca entre opressão e resistência. Opressão que se manifesta, por exemplo, na relação entre Bethânia e Alessandra (Dandara de Morais), uma jovem negra contratada para empregada da casa, ou nas frases de Dona Branca (Magali Biff), madrinha da protagonista e defensora do status quo. Já a resistência se estabelece na figura de Zé (Zé Maria), líder dos trabalhadores e do Centro Cultural que esses erguem nas terras do velho engenho. Além disso, a resistência também se agiganta quando toca as camadas simbólicas dos indivíduos, seja pelo viés do sagrado, através da manutenção de práticas religiosas afro-brasileiras, seja pelo viés do erótico, no qual a tensão sexual entre as personagens operará destacado papel na narrativa. Aliás, é na junção desses dois vieses que acontecerá a cena mais forte do filme, na qual, tomada por transe catártico, Bethânia se masturba com a terra do canavial para mais tarde gritar que “essa terra sou eu!”.

A direção precisa de Oliveira e Pinheiro se potencializa na inventiva fotografia de Fernando Lockett, um dos pontos altos da produção, seja com o bom uso das cores ou nos belíssimos contrastes de claro e escuro. A trilha sonora de Guile Martins escolhe um caminho ousado e muito bem realizado, quando opta por fazer do silêncio uma “presença” na música.

Açúcar, porém, só não é totalmente bem-sucedido por uma série de escolhas que comprometem justamente seu aspecto mais criativo, que é o recorrer ao gênero fantástico. Tzvetan Todorov, em texto clássico sobre o tema, afirma que o fantástico se ajusta entre dois gêneros: o estranho e o maravilhoso. Em comum, os três teriam o fato de trazerem acontecimentos insólitos cuja explicação oscile entre um fenômeno natural, que manteria a realidade como ela é, ou um fenômeno sobrenatural, que mostraria que o mundo é regido por regras que a razão desconhece. Se a resposta for natural, teríamos o estranho. Se sobrenatural, o maravilhoso. O fantástico, porém, conservaria a dúvida, não traria nenhuma resposta.

Em seu flerte com o fantástico, no entanto, Açúcar se perde em alguns momentos. Incapaz de manter a tensão o tempo todo, algumas cenas esbarram nos dois gêneros fronteiriços a ele, tirando a força de momentos nos quais, mantida a dúvida, o resultado seria muito mais poderoso. Mas, com certeza, ele ganha pontos ao afirmar a diversidade de um cinema brasileiro que deveria chegar a um público maior.

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