Crítica: A Casa (Hogar)

O mundo vive um momento de crise. Não essa crise de dois meses para cá. Uma crise econômica que já vem se manifestando há tempos. Não é nacional. É mundial. Certamente, porém, alguns governos locais batalhem avidamente para que ela se intensifique. O desemprego ronda o velho continente, assim como o novo. Aqui isso nunca foi novidade, mas alguns arrochos prometidos e realizados afogam a sociedade, fazendo-a diminuir seu padrão de vida. Os egos lá de cima, empanzinados em suas altas torres de marfim, ignoram o labirinto cada vez mais claustrofóbico a que as abelhas operárias estão reduzidas. A Arte fala sobre temas atuais, seja em roupagens antigas ou futuristas. A Casa, mais um lançamento espanhol na Netflix, se utiliza do hoje para falar sobre hoje.

Javier (Javier Gutiérrez) é uma lenda da publicidade espanhola. Atualmente desempregado, não consegue mais manter o alto padrão de vida de sua família, composta por mulher e um filho adolescente. O enorme apartamento cinematográfico tem que ser deixado para atrás, visto que o aluguel consome demais mês a mês. O lindo carro esporte deverá ser vendido. A companheira de sempre faxina lojas agora. A estrutura mudou. O mercado está fechado para tipos como ele (ou, na verdade, para quase todos os tipos). Diante dessa mudança obrigatória devido ao problema econômico, Javier psicologicamente não consegue superar as transformações pelas quais passa. Seu sucesso de outrora deve permanecer e a casa, para ele, segue como símbolo do que certa vez ele fora. O impacto emocional aumenta quando ele vê uma nova família, de constituição semelhante a dele, ocupar o que antes fora seu templo pessoal. Javier passa a segui-los de perto, como um fantasma da ópera a se fazer presente só nos momentos-chave de seu plano mirabolante e maquiavélico.

Lobo em pele de cordeiro.

Aproximando-se de Tomás (pelo excelente Mario Casas, provavelmente o ator espanhol mais contemplado na Netflix), o novo patriarca de seu antigo templo, Javier inicia uma espécie de jogo de xadrez sinistro, buscando aprender sobre essa nova família. Lições essas que expõem os pontos mais fracos de um lar sustentado por bases tão sólidas quanto gravetos velhos a segurarem blocos pesados de rochas enormes. Assim, como um espírito zombeteiro, Javier vai minando as relações e aparecendo como alguém de confiança em meio àquela casa conflituosa. Aqui, porém, surge talvez o principal ponto de afastamento para com a narrativa: o protagonista que seguimos nessas quase duas horas de exibição não nos traz qualquer tipo de empatia. Pelo contrário: suas motivações para com esta família especificamente são nulas. Não há uma questão de vingança, de amor, de ciúmes, de qualquer coisa. Há tão somente um ódio instantâneo e inexplicável por alguém que alugou um apartamento antes vago, sem qualquer relação com a vacância deste. Se o problema pelo qual Javier passa, e pelo qual muitos de nós passamos, antes era um motivo de empatia para com o personagem, suas ações só causam afastamento em relação a ele. Javier faz o que faz por amor: amor ao dinheiro. E dessas pessoas, eu, ao menos, estou mais do que farto!

Os demais personagens da narrativa são semelhantes a Javier: pensam no dinheiro, mas não acima de qualquer coisa. Sua mulher se molda diante das dificuldades econômicas; Tomás (apesar de aparecer em apenas uma fala) parece não aceitar atos de caridade no trabalho; a mulher de Tomás é basicamente sustentada pelo pai e, por isso, não tem que se preocupar com nada que o dinheiro sugere. Apesar disso, nenhum deles age tão grotescamente como Javier. Ou seja, a pessoa que estamos seguindo é detestável e nada nos aproxima dela. Cenas de tensão que nos fariam torcer para que ele não fosse pego nos dão uma motivação oposta aqui. Todo esse jogo do protagonista faz a peça cair no maior erro da realização: as soluções são extremamente forçadas. Javier parece um controlador omnisciente de todas as situações. Ele antevê os passos de seus peões turnos e turnos à frente, já se preparando para as peças que colocará no caminho, de maneira que sua obra seja completa a seu gosto. Javier nos parece, portanto, um semideus de seu próprio destino e dos outros.

Como um rato, assustado e escondido.

A idéia contida na produção de David Pastor e Àlex Pastor é extremamente interessante, importante e atual. O modo como o roteiro tenta reduzir seus personagens a meros joguetes do dinheiro é igualmente bem pensado. O que falta, porém, é um pouco mais de sedução por parte da narrativa. O que falta é um desenvolvimento um tanto mais realista para uma obra que se pretende realista. Javier não é capaz de errar em sua investida. Ele faz as coisas e tudo o que ele elabora dá certo. Só não entendemos como uma mente tão maravilhosa assim (no sentido de conquistas pessoais) o fez cair no anonimato de sua profissão. Faltou um pouco de liga a um filme que consegue se sustentar em seus temas principais, mas que não repete o sucesso em sua construção narrativa.

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