Crítica: O Declínio (Jusqu'au déclin)
A Netflix nas últimas duas semanas parece estar fazendo um esforço tremendo pra ser o mais relevante e pertinente que pode ser uma plataforma que se presta a transmitir a todo o mundo uma produção artística dos mais variados locais. Se semana passada ela veio nos dar vários socos na cara e no estômago com o excelente “O Poço” (cuja também excelente crítica de Caio Henriques vocês podem ler aqui), que extrapola o sentido de sobrevivência que nos é inerente de formas alegóricas ao ser humano enquanto ser social e político, nessa agora o subtexto é bem mais velada em favor de uma narrativa de thriller de sobrevivência clássica, mas a moral está lá: o ser humano quer, antes de tudo, sobreviver. É o que há de mais atávico em nosso comportamento, por mais que tentemos desconstruir isso com ideologias e teorias, no final das contas, o que nos importa é continuar vivos.
Aqui em O Declínio, esse instinto de sobrevivência é escancarado. O filme é basicamente uma versão ficcional em live-action daquele programa do NatGeo, “Preparados para o Fim”, que é totalmente focado em mostrar vários americanos tidos como, no mínimo, “excêntricos”, se preparando para o fim dos tempos. Então temos toda sorte de gente estocando comida e armas, aprendendo a fazer munição, construindo bunkers e por aí vai, sempre se preparando para o fim inevitável e iminente que poderá vir por uma série de razões: colapso econômico, invasão alienígena, apocalipse zumbi e, a mais comum, alguma praga que assole a humanidade.
Curiosamente e guardadas as devidas proporções, estamos passando por um momento parecido, em que pessoas estocam comida e papel higiênico (ora, cagar é consequência de comer) com medo de tudo que a covid-19 pode trazer para a humanidade. No filme, contudo, não temos nenhuma grande crise mundial, mas tão somente um grupo de pessoas que quer estar preparada para o fim e, por isso, se junta ao guru da sobrevivência Alain (Réal Bossé) em um acampamento remotíssimo no meio das ermas florestas nevadas de Quebec no Canadá. Alain é um grande sobrevivencialista da região e cria esse acampamento justamente para compartilhar toda a riqueza enorme de conhecimento de sobrevivência com pessoas de pensamento igual.
Tudo vai muito bem – assim como tudo ia muito bem aqui até umas duas semanas atrás – quando então as coisas deixam de ir de muito bem – assim como elas não vão muito bem no momento – e um acidente vai pôr a prova todos os participantes, que vão precisar sobreviver a todo custo. Como diz Alain, em um aforismo que talvez não seja dele, mas que carrega um ar de verdade absoluta: “Para viver, precisamos primeiro sobreviver.”
Com essa premissa e no cenário deslumbrantemente árido das gélidas florestas quebecas, o diretor Patrice Laliberté consegue construir com competência um thriller em que a ordem é sobreviver, apresentando um longa-metragem curto, de meros 83 minutos, e direto em sua proposta de deixar o espectador tenso a todo momento. Valendo-se também da boa cinematografia de Christophe Dalpé, que consegue capturar a bela inclemência do deserto de gelo, o filme conta também com cenas de ação bem urdidas e tecnicamente impecáveis, em especial quando consideramos que este é um filme independente, feito sem grandes orçamentos.
O Declínio é o primeiro filme quebeco original da Netflix e essa identidade da província de Quebec escorre pela tela a todo momento, seja pelo francês falado, seja pelas paisagens próprias do lugar, seja principalmente pelo fato de que estamos aqui com personagens que se sentem diferentes e às margens dentro do contexto social. De todo modo, mesmo que as alegorias e subtexto não te digam nada, trata-se um competente thriller, que merece sua atenção.
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