Crítica: Atrás da Estante (Circus of Books)
Karen e Barry Mason são um daqueles casais de velhinhos de filme. Ela, uma típica idishe mame, dessa cepa de mulheres judias fortes, dominadoras, centrais na família e atuantes na sinagoga. Ele, sintetizado na frase “procure o careca sorrindo”. Solar, bonachão, paizão. Três filhos, dois meninos e uma menina. Uma família formada no final dos anos 70 e ao longo dos loucos anos 80 do século passado. Comercial de margarina. Não fossem Karen e Barry os proprietários da Circus of Books, uma livraria e loja de pornografia e apetrechos sexuais voltada para o público LGBTQI+ que, por trinta anos, foi um dos centros aglutinadores da vida gay em West Hollywood.
É pelas lentes e o olhar de Rachel Mason, cineasta e filha do casal, que o documentário Atrás da Estante apresentará não apenas a trajetória de um família tão não-convencionalmente convencional, mas também o registro de uma era e de mudanças que redefiniram os rumos da sociedade. É um daqueles filmes que mostram como realmente o pessoal é sempre político. E que afetos importam muito mais que qualquer outra coisa.
Em seus aspectos formais, a produção opta por uma pegada bem tradicional. Mason não se dispõe a reinventar o gênero e nem se vale de nenhum dos artifícios dos docs modernosos, como uma edição nervosinha, fotografia vibrante ou roteiro videoclipado. Não. Roteiro, fotografia, edição e direção seguem por uma via bem conhecida, sem grandes surpresas de técnica. Eficiente.
O grande mérito dessa opção pelo minimalismo visual e técnico é reforçar os aspectos mais fortes da história contada e realçar a trindade certeira de um bom documentário: uma história com pessoas interessantes, um registro de um momento no tempo e possuir relevância que transcenda aquele momento. E nesses três pontos a produção manda muito bem.
Primeiro, como registro de uma era, Atrás da Estante fornece um retrato poderoso de como os anos 80 foram pesados para a população fora dos padrões heteronormativos nos EUA (e, obviamente, no resto do mundo). De um lado, a direita americana no poder, simbolizada em Ronald Reagan, vai usar as “pautas morais” e a defesa dos “bons costumes” como uma potente cortina de fumaça para encobrir a sua incapacidade de gerir competentemente elementos básicos como economia, saúde e educação. Desse modo, a comunidade gay vai ser sistematicamente perseguida, fato que a produção mostra com muita veemência. Como a História se repete, né, leitor Metafictions? Some-se a isso o fato dos anos 80 terem sido palco do boom da epidemia de AIDS, vista à época como uma doença-castigo de Deus para punir homossexuais. Pesado não ser heterossexual em tempos como aqueles.
E é aí que a Circus of Books vai se estabelecer como um ponto de resistência. De fornecedora de livros voltados a essa parcela do povo, passando por ponto de pegação entre as prateleiras de VHS pornôs, a livraria se transformou em um símbolo de tolerância em uma época altamente intolerante.
No fator personagens interessantes, o longa da Netflix dá aula. Karen e Barry são deliciosos de se olhar e despertam interesse a cada take. Ouvi-los contar como um especialista em efeitos especiais (que trabalhou na equipe de 2001: uma Odisseia no Espaço) e uma jornalista religiosa, que se conheceram em uma festa para jovens judeus, se transformaram em donos de uma sex shop e, mais tarde, chegaram a ser um dos maiores nomes na produção de filmes pornográficos homossexuais, passando por episódios envolvendo o próprio Larry Flint (que dá depoimento sobre o casal) e um arbitrário processo criminal, é simplesmente irresistível. Com o bônus de morrer de rir com os esporros que Karen distribui a torto e a direito no marido e na filha (também conhecida como a diretora).
Ao quesito relevância, Atrás da Estante adiciona uma dose bonita de emoção e abre um caminho inesperado na narrativa. É lindo e contundente demais ver a trajetória de Karen Mason ao descobrir a homossexualidade do próprio filho. Ver uma mulher forte e religiosa ser confrontada com as próprias crenças e esbarrar nos dogmas de sua religião, que enxergam seu filho como uma abominação, e lidar, ao mesmo tempo, com a sensação de ser uma hipócrita, já que, no trabalho, ela se vê como super compreensiva com homossexuais e, em casa, ela é tomada pelo choque, é extremamente forte.
Atrás da Estante realiza uma das coisas de que mais gosto no gênero documentário. Mostra como tudo que é humano é, naturalmente, grandioso. Uma livraria pornô na Califórnia se transforma, graças aos seres humanos que nela transitam, em uma belíssima discussão sobre Política, Família, Religião e Sociedade. E, mais que tudo, um libelo sobre a força avassaladora dos Afetos.
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