Crítica: Sergio
Batizar um filme como homônimo de alguma personalidade que tenha atingido um nível elevado de notoriedade vai ser sempre uma tarefa complexa e tenderá a uma série de insatisfações. Sergio, ao contrário do que tenta sugerir a publicidade da Netflix, está longe de se tratar de uma cinebiografia do primeiro diplomata brasileiro a atingir o alto escalão da Organização das Nações Unidas.
Com uma tara inexplicável por flashbacks nitidamente exagerados, em meio às trágicas consequências de um atentado terrorista realizado pela Al-Qaeda na sede da ONU em Bagdá, em meados do ano de 2003, o diretor Greg Barker (que já dirigira o bom documentário sobre o personagem anos antes) nos insere nos momentos finais da vida do diplomata Sergio Vieira de Mello (Wagner Moura), ao lado de seu colega Gil Loescher (Brian F. O’Byrne), então soterrados pelo monte de concreto retorcido, enquanto dois bombeiros americanos lutam de maneira infrutífera pela sua retirada dos escombros, dando ao protagonista duas horas de reflexão sobre alguns episódios de uma vida inteira dedicada aos direitos humanos no cenário internacional.
Conforme spoiler dado pelo Jornal Nacional de 19 de agosto de 2003, apenas cinco dias após a criação da Missão de Assistência das Nações Unidas no Iraque, um homem-bomba solitário explodiu um caminhão no terreno do Canal Hotel de Bagdá, ferindo centenas de pessoas, matando duas dezenas delas e alterando os rumos da diplomacia mundial.
Partindo desta premissa, podemos dividir Sergio em três atos: a viagem inicial do diplomata ao Iraque, seu amor à primeira vista por Carolina (Ana de Armas) e a tentativa final de resgate. Sergio e Gil chegam ao Iraque após a conveniente invasão americana, buscando acalmar os ânimos da população e estabelecer eleições democráticas, pincelando uma visão geral da série de violações humanitárias cometidas pelos Estados Unidos à época.
Assim que somos apresentados a Paul Bremer (Bradley Whitford), líder da invasão americana, a postura combativa do protagonista nos sugere uma atmosfera de cabo de guerra entre idealismo e pragmatismo político dentro de um cenário de ocupação. No entanto, quando o roteiro simplesmente coloca o personagem interpretado por Whitford para escanteio, a qualidade dramática da narrativa evapora.
Embora seja provável que a grande maioria dos espectadores não esteja por dentro dos desdobramentos da atuação de Vieira de Mello no cenário global, os primeiros minutos de Sergio oferecem elementos mais do que suficientes para que nos interessemos pelas nuances de sua história de vida. É exatamente pelo surgimento desta expectativa que a frustração começa a contaminar a evolução do roteiro.
Por que os objetivos de um humanista assassinado em missão de paz não são suficientemente interessantes para liderar um contexto narrativo de quase duas horas? Por que o impacto do atentado e a morte de Vieira de Mello se reduz a um epílogo? Por que poupar as peças mais importantes? Por que tantos vícios em cenas novelescas e puramente estéticas?
Wagner Moura, à sombra de Capitão Nascimento e Pablo Emilio Escobar Gaviria, se salvou ao destilar alguma potência de uma história desamarrada que mais parece preocupada em se negar a pintar o seu personagem como santo, mas também tem medo de expor os seus próprios demônios. A química instantânea de Wagner Moura e Ana de Armas, ao eclodir de uma paixão três anos antes em missão no Timor Leste, é suficiente para manter interessantes as cenas mais expositivas, embora escancarem os problemas inerentes à característica mais prejudicada do roteiro, que é justamente o fato de utilizar uma história de amor com prazo de validade praticamente como único pano de fundo de uma biografia. Até as relações familiares mais profundas do protagonista são inseridas de forma destrambelhada. A falta de criatividade chega a ser constrangedora.
Como se não bastasse, Carolina passa todo o seu tempo em cena instigando diálogos que tirassem Sergio de sua zona de conforto. Embora ela também possuísse algum protagonismo em sua atuação na ONU, o roteiro jamais incutiu profundidade em sua personagem, sendo uma mera alegoria da personalidade do protagonista até os seus momentos finais.
Enfim, entre pedidos de socorro em Bagdá e beijos na chuva no Timor leste, Sergio finge contar uma história que eu finjo saber qual é. O lado bom é que os críticos do sotaque do Wagner Moura, desta vez, vão ter mais sarna pra se coçar. Sobrou até para o povo iraquiano, como sempre, responsabilizado por uma política de segurança americana calcada no extermínio.
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