Crítica: Dias Sem Fim (All Day and a Night)
Certa vez um amigo disse: “Entendo que quem comete um crime bárbaro como assassinato deve ser punido com rigor, pelo bem da convivência em sociedade. Mas eu só acho que toda história de assassinato começa bem antes do aperto do gatilho”.
Dias Sem Fim, do diretor Joe Robert Cole, estreia essa semana na Netflix e nos traz exatamente essa discussão: o que está por trás dos níveis de violência social alarmantes e cirurgicamente localizados em um segmento específico da população? Com um recorte óbvio (a periferia negra de uma cidade americana), o filme acerta em dissecar uma história tão repetida sem apelar para momentos de autopiedade e tentativas de autocomiseração. Seu protagonista, Jah (Ashton Sanders), define bem o espírito do longa: ele é o que é.

O romancista americano Colson Whitehead definiu muito bem a história negra nos EUA (e, por extensão, em todo o continente americano): é uma história de corpos roubados em terra roubada. Corpos trazidos à força de um continente pilhado pelos europeus e subjugados à ignomínia da escravidão, em uma terra previamente roubada dos povos nativos. E lembremos, meus caros, não podemos esquecer. Isso começou no século XVI e terminou há pouco mais de cem anos somente. No Brasil, essa realidade é ainda mais dramática, uma vez que fomos o último país ocidental a abolir a escravidão negra, fazendo com que em cada 10 anos de nossa História, nada menos que 7 tenha sido sob o signo da escravidão. E tem que ser muito idiota para não entender que pagamos essa fatura até hoje.
Aqui, faço questão de trazer as palavras do protagonista Jah, que resumem com exatidão o buraco em que estamos metidos: “Com a escravidão os negros aprenderam a sobreviver, mas não a viver. Bairros inteiros sabem mais sobre a vida na prisão do que fora dela. Gerações de homens, mulheres, irmãos, irmãs, mães, pais, tias, tios, primos, todos nós. Fazemos parte da mesma história que só se repete.”
Alguma diferença com a nossa dura realidade?

O filme, de forma parcimoniosa ao longo de suas duas horas, irá descortinar várias camadas de uma tragédia em andamento, que parece nos colocar em um looping infinito de histórias quase idênticas. Gerações e gerações de garotos e garotas com a violência marcada desde a mais tenra idade que responderão com mais e mais violência. E assim vamos caminhado, com vários interesses por trás da manutenção desse ciclo e os imbecis fingindo que fariam melhor se estivessem na mesma situação ou, pior, fingindo que isso nem existe.
O momento político nos EUA, que tentamos avidamente emular como tolos aqui em Pindorama, nos prova que a estupidez não tem limites conhecidos. Dias Sem Fim vem nos mostrar algumas das consequências. Que realmente parecem sem fim.
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