Crítica: Estranhos em Casa (Furie)

Seguindo com o nosso catálogo de títulos exaustivamente recriados em busca de um apelo comercial que nem sempre faz sentido, Estranhos em Casa, do francês Furie, segue a premissa do “baseado em fatos reais” para colar o nosso bumbum na cadeira. O filme nos conta sobre a saga de uma família que, ao retornar de suas férias de verão dois meses após terem viajado, se depara com a sua propriedade abruptamente usucapida pela babá de seu filho e o seu namorado.

Impedidos de retornar à sua própria residência por conta das inevitáveis ilusões burocráticas e brechas legais que permeariam o caso, a família composta por Paul (Adama Niane), Chloé (Stéphane Caillard) e seu filho Louise (Matthieu Kacou), não teve alternativa a não ser permanecer alocada em seu motorhome até que a batalha judicial fosse solucionada.

O roteiro evolui basicamente em torno de Paul, um professor de história, preto, que aparenta ser blindado por um verniz de civilidade que potencialmente será rompido diante de uma instabilidade emocional acumulada. Conforme a alcunha de “preto por fora e branco por dentro” vai sendo destilada em contextos velados, as até então homeopáticas doses de fúria acabam sendo concentradas de modo a fazer com que o protagonista questione os seus valores colocados em conflito.

A discussão central sobre a posse da casa acaba se tornando apenas mais um detonador capaz de levar o protagonista ao encontro do seu lado mais obscuro. Quando Mickey (Paul Hami), o canastrão proprietário do parque de trailers, começa a forçar uma aproximação com Paul, os seus verdadeiros demônios começam a ser aflorados e o filme nos direciona a reflexões mais complexas que vão de masculinidade tóxica, virilidade e monogamia, até mesmo a herança do racismo estrutural e as relações de privilégio.

Com o contínuo looping do personagem principal em suas próprias emoções, incitado pelo maniqueísmo representado pela personalidade de Mickey, acumulamos uma quantidade bem considerável de tensão. Quando uma antiga relação jovial entre Chloé e Mickey fica escancarada (sem maiores explorações), o roteiro é competente e consegue angustiar ainda mais do que propôs inicialmente.

Como desde os primeiros segundos o filme busca nos convencer de que teremos que lidar com a violência e os seu desdobramentos, o diretor Olivier Abbou quase não nos confunde, o que pode ser analisado como um aspecto ruim da obra. Essa ponte entre pavio e explosão não é particularmente harmoniosa e, de uma hora para a outra, somos testemunhas forçadas da carnificina. Por outro lado, assim como em outras produções francesas, essa violência é filmada de maneira crua e sem maiores firulas, surgindo muito mais grosseiramente do que na maioria dos blockbusters de baixa qualidade no gênero. Se a evolução deixa a desejar, a intensidade pode ter sido compensatória.

Estranhos em Casa é totalmente baseado na observação de comportamentos, o que tende a nutrir relevância às performances principais. Nesse aspecto, a fotografia de Laurent Tangy consegue fornecer ao espectador as camadas que o filme conquista de maneira gradativa, traduzindo em sua iluminação a corda bamba entre o lado racionalizado e o lado primitivo dos protagonistas. O charme fica por conta da construção de suspense advinda da manutenção de todos os elementos típicos da categoria e aqueles que só fazem sentido exatamente nesse contexto.

Depois de todo o caos, foi interessante perceber a metáfora montada em cima dos caçadores de porcos, partindo dessa para uma melhor, ironicamente, como meros porcos assassinados, ressignificando as duas maiores etapas do roteiro.

Ah, e como se trata de um filminho francês, antes das letrinhas subirem ainda há tempo para uma foda indie, com direito a orgasmo e refrão em sincronia. Isso que é terror psicológico!

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