Crítica: Um Crime Para Dois (The Lovebirds)
Em 2017, o paquistanês radicado nos EUA Kumail Nanjiani era somente mais um dentre os muitos comediantes de stand up americano que participam de alguma série cômica na TV. No caso, a série era (e ainda é) a excelente “Silicon Valley” e, muito embora seu trabalho nela seja realmente muito bom, ele era apenas mais um nome. Foi então que ele, com sua hoje esposa, escreveu, produziu e estrelou a comédia dramática/romântica “Doentes de Amor“, um filme realmente bom (cuja resenha você pode ler aqui) que trouxe um certo frescor para o gênero, alçando Kumail ao estrelato.
É nessa esteira que estreia Um Crime para Dois, apostando pesadamente na química entre Kumail e a lindíssima e talentosa Issa Rae como um casal aparentemente ideal, mas que, tal qual a realidade por trás da perfeição tão alardeada pelas redes sociais de praticamente todo mundo, de perfeito nada tem. E folgo em dizer que esta comédia acerta mais do que erra ao contar a história de Leilani e Jibran que, no exato momento em que têm uma briga que leva ao término da relação, atropelam um sujeito, armando assim o palco para uma noite alucinante na qual toda a trama se desenvolverá, EXATAMENTE como duzentos outros filmes do gênero, um deles inclusive protagonizado pelo próprio Kumail, o divertidinho “Stuber” com Dave Bautista.
Temos aqui uma estrutura tradicionalíssima de comédia. Uma merda acontece, vários encontros e desencontros são desencadeados e pessoas praticamente inimputáveis tomam decisão ruim atrás de decisão ruim, invariavelmente com tudo acabando bem quando os créditos rolam. O que importa é que nessa jornada a gente (o espectador) consiga dar umas boas risadas, escapar um pouco da realidade e talvez se pegar com a cremosa/cremoso (existe cremoso?) ao lado. E Um Crime para Dois consegue isso bem, sem inventar nada em sua estrutura, mas indo além no conteúdo.
Isso porque temos aqui elementos até certo ponto diferentes do usual sendo muito bem usados pelo roteiro de Aaron Abrams e Brendan Gall. Pra começar, temos um casal de protagonistas completamente diferente do que se vê normalmente por aí. Kumail é paquistanês e Issa nasceu nos EUA, mas seu pai é senegalês e ela morou lá por muito tempo. É um par improvável para uma produção de um grande estúdio de Hollywood (Paramount), ainda mais para protagonizar uma espécie de filme que representa há milênios o verdadeiro cinemão americano. Não se trata de um filme independente que se presta a desnudar a desigualdade e o racismo nos EUA, mas, sim, de uma peça de puro entretenimento que por acaso é protagonizada por pessoas com um pouco mais de melanina na pele.
Isso nos leva a um segundo elemento: o longa passa longe da recente onda de militância pela igualdade racial muitas vezes forçada na produção artística americana, ele se entende enquanto entretenimento pura e simplesmente. É ao dar representatividade aos estratos mais discriminados da população em papéis que poderiam perfeitamente ser de um ator de qualquer cor, credo ou opção sexual que uma obra consegue naturalizar para o ignorante que o paquistanês não é terrorista ou que a negra não é uma fodida viciada em crack, para ficar nos estereótipos mais difundidos nos EUA. A ancestralidade dos protagonistas é unica e exclusivamente usada em algumas piadas bem mordazes e pertinentes à história. E isso é bom não só pela questão da representatividade, mas por não tentar dar ares de profundidade a uma obra que é intencionalmente rasa, o que a tornaria anacrônica, sem ensinar nada, posto que vazia, e tampouco entreter, posto que milituda sem a sensibilidade e a seriedade devidas.
Para além disso, o conteúdo apresentado na tal estrutura tradicional também traz algum frescor porque, apesar de não ser um filme independente, os diálogos entre os protagonistas muitas vezes trazem uma vibe de comédias de menor investimento, como o próprio “Doentes de Amor” que citei acima, tirando um pouco aquela sensação engessada que a gente tem em obras do gênero. E é aqui que o filme brilha em seu máximo, nos diálogos e na química entre Jibran e Leilani, muito embora deixe um pouco a desejar nas cenas mais dramáticas.
Um Crime para Dois é um filme também feito para dois. Apesar da minha vocação para eremita estar se mostrando acertadíssima nessa quarentena e eu ter visto sozinho (eu também durmo sozinho, como sozinho, jogo videogame sozinho, faço amor sozinho, falo sozinho, bato a cabeça na parede sozinho, penso em me matar sozinho…), o longa cumpre seu papel e vai um pouco além, é daqueles feitos sob medida para se ver com o(a) mozão/mozona (existe mozona?) comendo uma pipoca, coisa que nem sozinho eu faço porque acho que atrapalha o filme e que talvez explique o porquê de eu estar sozinho (mas mais atento ao filme!).
Leave a Comment