Crítica: Destacamento Blood (Da 5 Bloods)

A primeira cena de Destacamento Blood não é, tecnicamente, parte do filme. É a reprodução de um trecho de uma famosa entrevista de um dos maiores seres humanos a andar pela Terra, o boxeador Muhammad Ali. Nela, ele explica sua recusa em defender um país que o rejeita para ter que matar irmãos de pele escura em um país estrangeiro que nunca o fizeram mal, ao contrário dos governantes de seu país. Essa postura lhe custou um tempo na prisão e a quase destruição de sua carreira. Mas Ali perseverou. E aqui ele antecipa o espírito dessa nova e surpreendente obra de Spike Lee.

Durante a Guerra do Vietnã (ou Guerra Americana na versão local), um esquadrão formado por cinco soldados negros liderados por “Stormin” Norman (Chadwick Boseman), os autodenominados “Bloods”, chega aos destroços de um avião da CIA e recuperam sua valiosa carga destinada ao pagamento a nativos colaboradores na luta dos americanos contra os vietcongues. Inspirados pelas palavras de Norman sobre o mau tratamento dos afro-americanos pelo governo dos Estados Unidos ao longo da História, os Bloods decidem pegar o ouro para si e enterrá-lo para que possam recuperá-lo mais tarde. No entanto, em um contra-ataque vietnamita, Norman é morto e seus companheiros são obrigados a deixar o tesouro para trás, assim como o corpo de seu líder. Nos tempos atuais eles se reúnem em Ho Chi Min com a missão de recuperar ambos.

É preciso dizer que o filme tem pontos muito altos, assim como alguns baixos, mas é certo que algo impressiona e certamente o tornará símbolo de uma era: Spike Lee conseguiu captar de forma cirúrgica algumas das questões mais em voga na atual onda da luta antirracista, evocando feridas abertas por aquela que é certamente a mais traumática das guerras travadas pelos EUA. Em certo momento, um dos veteranos corrige o guia vietnamita que se refere a George Washington como “Pai da América”, lembrando de seu passado escravocrata (fica a dica para o próximo tratamento de estátuas nos EUA) e uma parte do dinheiro que eles conseguem recuperar vai para o movimento Black Lives Matter, protagonista dos protestos atuais. E que ninguém estupidamente acuse o diretor de oportunista, uma vez que as gravações do longa terminaram há exatamente um ano e seu lançamento para este momento já estava previsto há meses. O que torna esse filme atual não é a nova onda de protestos, mas sim a perenidade das questões que ele denuncia. Tudo o que ele fala está aí pra quem quiser ver há séculos. Uma hora o caldeirão explode.

Em que pese uma demanda às vezes exagerada da suspensão da descrença por parte do espectador, como no momento em que um personagem pisa numa mina e, ato-contínuo, vemos a chegada de um esquadrão antiminas com uma providencial corda para salvá-lo, e uma trama que, convenhamos, é pra lá de rocambolesca, o filme nos traz uma performance técnica impecável (sendo referido como um dos filmes mais caros da carreira de Lee, reconhecido por fazer um cinema muito mais engajado do que ostensivo). As cenas granuladas em formato 4:3 usadas para fazer referência ao passado (em contraposição ao padrão 16:9 para as narrativas do tempo atual), a fotografia que remete muito bem às imagens de arquivo da guerra e mesmo a inclusão de cenas de eventos históricos ao longo da narrativa são méritos inegáveis aqui.

Mas o maior feito deste filme é a construção do personagem Paul (Delroy Lindo), peça chave para de fato admirarmos a nova obra de Lee. Sem diminuir a importância dos outros personagens do destacamento, todos muito bem, é ele que encerra tudo aquilo que o diretor quer denunciar, todos os traumas e todos os crimes cometidos na guerra, toda a contradição e complexidade de corpos e mentes expostos ao horror em troca de desprezo e marginalização. Paul acaba se tornando o arquétipo do anti-herói perfeito neste contexto, e seu discurso de pouco mais de três minutos no último terço do longa, em primeira pessoa, olhos nos olhos com o espectador e de punhos em riste ao final já se tornou, instantaneamente, um dos momentos mais poderosos do Cinema. Ao escolher, segundo suas próprias palavras, quando e como irá morrer, Paul destitui seus verdadeiros algozes engravatados de seu maior poder, aquele que reina sobre o seu corpo e o seu destino. Xeque-mate!

O filósofo Kant propõe que existem formas de compreensão da dimensão das coisas que escapam totalmente a qualquer tentativa de conceituação, porque ligadas exclusivamente aos sentimentos. Nesse sentido, ele nos ensina que a percepção do belo é a relação diante de uma obra na qual você, sem conseguir antecipar o porquê, admira o fato de que as coisas se encaixam. Diferentemente, a percepção do sublime pressupõe uma relação desarmônica com o que está sendo visto, mas que no fim também irá produzir uma sensação de prazer interior, que está fora da obra em si.

Destacamento Blood não se pretende belo. Sua intenção é ser sublime. E ele alcança seu objetivo.

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