Crítica: Enola Holmes
Os anos 80 nos deram alguns dos filmes infanto-juvenis mais maneiros de todos os tempos. Haviam vários diretores e roteiristas que cresceram (ou, mais exatamente, não cresceram) com a sensação de que filmes para jovens não representavam os jovens e sim os anseios moralistas de seus pais babacas, e trouxeram o conceito de liberdade tão presente nos Estados Unidos para uma juventude americana que ansiava por se ver na cultura popular. Um desses filmes chama-se “O Enigma da Pirâmide” (Young Sherlock Holmes no original). Com roteiro de Chris Columbus (que escreveu “Goonies“, “Gremlins” e produziu a franquia Harry Potter), dirigido por Barry Levinson (diretor de “Rain Man” e “Bom dia, Vietnã”) e produzido pelo gênio absoluto Steven Spielberg, o filme contava a primeira aventura dum jovem detetive Sherlock Holmes.

Holmes, ainda no colégio interno, conhecia um John Watson gordinho e engraçado e era forçado a crescer rápido demais com o assassinato de seu professor, mentor e amigo. O filme, um clássico da Sessão da Tarde, parece ter desaparecido dos radares atuais, mas é uma dessas joias do cinema que entrega absolutamente tudo o que se pode esperar de um filme de primeira linha e tudo o que um guri de calças curtas poderia desejar: aventura, mistério e romance no formato certinho para uma criança. Na década seguinte e nas subsequentes, “aventura” tornou-se uma desculpa para colocar violência, esportes radicais e parkour na tela, “mistério” virou o filho bastardo e negligenciado do terror, e “romance” sem sexo ficou restrito às comédias românticas água-com-açúcar. Aquele elemento de juventude, de frio na barriga, de coragem que não vem acompanhada necessariamente de músculos, da primeira vez pra tudo que é pra tudo mesmo, até pro primeiro olhar com riso bobo enrubescido, perdeu-se numa busca medíocre de adultizar (ou imbecilizar) crianças e jovens seguindo o caminho traçado pelas séries de TV com adolescentes de 30 anos e crianças precoces que ganham medalha de “último vencedor”.

A introdução gigantesca é pra evidenciar o quanto me faz falta tudo isso e o quanto eu ainda procuro um “novo Goonies” ou uma “nova História Sem Fim”. Não com um sentimento de nostalgia, já que pra isso eu posso pegar meus incontáveis DVDs (e alguns VHS) com filmes da época e reprisar, mas com o desejo de que a gurizada de hoje em dia possa ter tudo isso em sua juventude. De vez em quando esses elementos aparecem aqui e ali, frequentemente pelas mãos dos mesmos artistas que realizaram os filmes daquela época, mas é raro. O sucesso da série “Stranger Things”, em boa parte, se deve exatamente a isso, mas, no caso dela há, sim, um elemento de nostalgia muito forte. Talvez não por acaso venha das mãos da Netflix e com o rosto de Millie Bobby Brown o delicioso Enola Holmes, spin-off de Sherlock Holmes que conta a primeira aventura da irmã mais nova do detetive.
O filme foi produzido com todo o esmero característico da Netflix, mas, diferente do que a empresa de streaming tem feito, ele tem mais de duas horas de duração – o que mostra que este não foi “apenas mais um” filme em seu catálogo. Há um cuidado maior presente em cada um dos aspectos do filme, na cenografia que lembra as grandes produções da era de ouro da Disney, na direção de Harry Bradbeer e, em especial, na adaptação redondinha de Jack Thorne. Roteirista da série “Skins” e do filme “Extraordinário“, Thorne mostra que não apenas entende de adaptações de livros pro cinema (nesse caso o romance “Enola Holmes – O Caso do Marquês Desaparecido” de Nancy Springer) mas sabe dar voz aos jovens de forma sensível e inteligente.

Neste que parece (e torço para que assim seja) o primeiro filme de uma série, conhecemos Enola Holmes, uma garota que cresceu apenas com a mãe (Helena Bonham Carter, sempre ótima), uma mulher forte, independente e um tanto excêntrica, não diferente de seus filhos, já que as maçãs não caem muito longe da árvore. Enola aprende com a mãe tudo o que uma mulher deveria aprender para prosperar em um mundo que não foi feito para ela – o final do século 19 que, tristemente, se parece muito com o início do século 21. Quando sua mãe desaparece na manhã de seu aniversário de 16 anos e, se isso não bastasse, com a vinda de seus irmãos para “dar jeito na casa”, a menina se vê forçada a fugir e investigar ela mesma tal desaparecimento, já que os “homens da casa” estão preocupados demais com seus próprios umbigos para tomarem uma atitude adulta.
Em sua fuga ela conhece o Visconde Tewksbury, Marquês de Basilwether, um jovem nobre que está tentando escapar de sua família rígida. Juntos eles rumam para uma Londres tosca, suja e habitada por gente escrota como toda cidade grande. Atrás dela vem Henry “Witcher-Superman” Cavill no papel de um Sherlock Holmes mais “fofinho” do que de costume, o que gerou polêmica – e um processo na justiça – desde antes de o filme ser lançado. Sherlock Holmes foi escrito, inicialmente, como um homem incapaz de demonstrar qualquer tipo de sentimento e após a morte do irmão, Arthur Conan Doyle, criador do personagem, passou a conceder certas emoções ao detetive. Acontece que o primeiro Sherlock, um “sociopata altamente funcional” como o Holmes de Benedict Cumberbatch se descreve na série “Sherlock”, é de domínio público, mas o lado emotivo do personagem é marca registrada e a família de Conan Doyle tem o controle dos direitos autorais de qualquer Sherlock Holmes que demonstre algum tipo de emoção humana. Polêmicas à parte, Cavill está bem no papel e funciona como contraponto à Enola de Millie Bobby Brown, essa sim o ponto alto do filme.

A jovem atriz, que novamente se confirma como aposta certeira para conduzir uma história, está tão à vontade no papel que parece brincar na tela: fala com a câmera (talvez um pouco demais, e esse foi um dos pouquíssimos elementos que talvez merecessem ter sido corrigidos), troca de disfarces, indo de “tomboy” a “milady”, segue pistas, desvenda enigmas, pula pela janela, dá porrada, sem nunca perder de vista a ideia de que Enola é apenas uma menina em um mundo de adultos, e é exatamente nesse aspecto que o filme se destaca das produções infanto-juvenis recentes. Ao não se deixar adultizar, a Enola Holmes de Bobby Brown se mostra muito mais madura que os adultos tacanhos ao seu redor, preocupados com suas aparências, seus esquemas mesquinhos, suas ambições e desejos vulgares e, muitas vezes, simplesmente risíveis. No fim das contas, o filme – como os clássicos dos anos 80 – além de trazer de volta aquela aventura que é aventura mesmo, mostra que crianças são muito mais capazes e inteligentes que suas contrapartes enrugadas e, num tom bastante coerente tanto com o final do século 19 quanto com 2020, que mulheres dão um banho nos barbados babacas, o que, novamente, vai deixar muito machão de pau pequeno boladinho. Na boa? Fodam-se eles.
Boraê Netflix, conta logo pra galera quando é que sai o 2!
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