Crítica: O Diabo de Cada Dia (The Devil All the Time)

O meu escritor favorito da vida, aquele que ilustra o avatar dessa minha mini-bio do site e um dos únicos artistas cujas palavras pareciam refletir por completo todos os meus anseios, angústias, desejos e medos é Charles Bukowski. Seu alter ego mais comum, o beberrão, durão e pobretão Henry Chinaski, agia, pensava e produzia sua arte não como uma forma pura de negócio, mas, sobretudo, como aquilo que a verdadeira arte anseia ser, como a sua verdade, como aquilo que toca o artista, como um arroubo de expressão feita tão somente para si e não para seus pretensos “fãs”.

Apesar da temática ser totalmente diferente do mundano e hodierno que era a produção artística do velho Buk, O Diabo de Cada Dia me trouxe a lembrança de sua obra por ser calcado num realismo brutal, em vidas ordinárias extraordinárias e no retratar nada glamourizado ou romantizado do pobre, sem aqui tentar ser um libelo contra qualquer tipo de desigualdade social ou mostrar o drama que a pobreza deflagra na vida das pessoas. Trata-se de um filme que se fosse protagonizado por um assassino de aluguel, família mafiosa, caubói no velho oeste ou por alguma rainha, seria rotulado de épico imediatamente por toda a imprensa especializada, mas, sendo protagonizado por gente branca fodida do interior do cu do meio-oeste americano, é só mais um drama. Mas, não se engane, caro leitor, a saga da família Russel é tão épica, fascinante e eletrizante quanto qualquer grande filme deste gênero.

Passado no período de maior prosperidade da história dos EUA (e possivelmente de qualquer nação na história recente do mundo) compreendido entre o fim da 2a Guerra e o começo da Guerra do Vietnã, O Diabo de Cada Dia traz um roteiro com uma certa sofisticação temporal, indo e voltando no tempo com segurança e sem em momento algum deixar o espectador perdido. Seu primeiro protagonista (e são muitos) e ponto inicial da narrativa é Willard Russel (Bill Skarsgård), um sujeito que volta da guerra contra os japoneses no Pacífico onde testemunhou e participou de incontáveis horrores. A partir de Willard e dos encontros que ele vai tendo na vida, acompanhamos também as histórias paralelas do casal Sandy (Riley Keogh) e Carl (Jason Clarke), do Xerife Bodecker (Sebastian Stan), do pastor Teagardin (Robert Pattinson) e do filho de Willard, Arvin (Tom Holland) ao longo desses 20 e poucos anos.

Mais do que isso não falo. Temo os spoilers e gostaria que todos, assim como eu, tivessem a experiência de assistir a esse filme sem sequer terem visto o trailer, o que inclusive é uma prática que eu cada vez mais tenho feito e que tem se mostrado acertadíssima. Além disso, seria uma tarefa inglória tentar resumir a verdadeira epopeia que é mostrada na tela, sendo certo que a sinopse que aparece na Netflix é nada menos do que patética, diminuindo sobremaneira o verdadeiro impacto que o longa pode causar a quem estiver disposto a recebê-lo.

Assim, resta-me falar dos sentimentos, das sensações e da porrada que são os 148 minutos de exibição. Temos aqui uma obra filmada com tamanho esmero e carinho que aquela tentação de pegar o celular que nos acomete a todos sequer ameaçou aparecer em mim. Isso porque aquela vida difícil, de gente cujo problema é a vergonha passada por ter grana só para fazer fígado de frango frito para a recepção do novo pastor da cidade, fascina por sua simplicidade, por ser corriqueira e por ao mesmo tempo revelar acontecimentos e segredos na mesma medida surpreendentes e que já eram de se esperar.

O diretor Antonio Campos se vale muito bem de um elenco de gente muito boa e conhecida, sem que absolutamente ninguém aqui entregue uma atuação que não excelente. É incrível e salutar ver o ator que Robert Pattinson vem se tornando, bem como testemunhar todo o talento do Homem-Aranha Tom Holland aflorando em um personagem com quem Peter Parker sequer seria capaz de dialogar.

Contudo, o ponto alto da obra está mesmo no roteiro adaptado pelo próprio diretor Antonio Campos e seu irmão Paulo Campos, ambos novaiorquinos filhos do jornalista Lucas Mendes, aquele mesmo fera do Mannhattan Connection que você talvez conheça. Não satisfeitos em fazer uma adaptação que carece de falhas, eles tiveram ainda o brilhantismo de convidar o próprio autor, Donald Ray Pollock, para ser o narrador, o que é genial não só por ser a narração um recurso que funciona de forma perfeita no filme, mas também porque Pollock faz um trabalho excepcional com a voz pesarosa de um narrador onisciente, que sabe do destino trágico de todas as suas criaturas. Lendo um pouco a respeito, descubro que Pollock lançou seu primeiro livro em 2008, na tenra idade de 53 anos, após uma vida inteira dedicada a trabalhar como motorista de caminhão de uma fábrica de papel, o que mais uma vez me remeteu ao Chinaski de Bukowski.

Pollock escreve sobre o homem comum, sobre o sujeito que limpa a escola, sobre a moça que faz a melhor moela do bairro, sobre o flanelinha que é pai do Ygor Catatau do Vasco, sobre a pastora filha da puta que casa com o filho que era namorado da enteada, sobre mim, sobre vocês, sobre nossos pais, sobre nossos vizinhos. E só um sujeito que viveu a vida inteira como um homem comum, longe dos círculos literários e daquela elite intelectual e pretensiosa que discute metafísica na obra de gente como Woody Allen e Noah Baumbach, seria capaz de não só escrever esse épico do homem comum, mas de narrá-lo com tamanha propriedade. Pollock fala sobre o quanto de nossas vidas é determinado pelo nosso convívio familiar e o quanto a família é, em nossa sociedade, nosso último refúgio, por mais doloroso, dolorido e miserável que isso possa ser, em especial em um cenário no qual não há sequer qualquer outra opção.

Enfim, sei que essa minha resenha talvez esteja uma bagunça. Admito. O que não é uma bagunça na minha cabeça é a razão de ser desse site. E eu posso dizer com segurança e com a propriedade de quem o fundou que é por causa de filmes como esse O Diabo de Cada Dia que o MetaFictions existe.

Vejam.

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