Crítica: Ratched - 1a Temporada
Reza a lenda que o conceito de loucura para Einstein é a prática de uma ação repetida esperando-se um resultado diferente. Gosto de pensar na loucura em um senso mais comum, de que a insanidade provém simplesmente da ação ou pensamento diferentes dos considerados normais ao coletivo. De modo que uma loucura coletiva passa a ser vista como uma atividade rotineira a todos ou à maioria. Gritar, bater, se envolver em contenda por causa de 11 homens correndo atrás de uma bola contra outros 11 certamente seria loucura, mas como o coletivo o faz, torna-se normal. Ou se relacionar intimamente com uma inteligência artificial. E por aí vai. A nova série da Netflix, Ratched, dá um voo alto na loucura das pessoas que se entendem tão sãs a ponto de se considerarem a ponte para a melhora daqueles socialmente loucos mesmo.
Temos aqui a história solo de Mildred Ratched, personagem da megera enfermeira do clássico “Um Estranho no Ninho“. Estamos de frente para um prequel da protagonista, entendendo os caminhos que a levariam a ser aquela conhecida por nós há décadas. Seus primeiros passos como assistente em um hospital psiquiátrico se dá para que ela esteja próxima de um psicopata em série, que esfaqueou quatro padres por motivos pessoais. A partir dessa trama, a série vai nos apresentando diversos outros personagens, não só entre pacientes, mas os ditos “normais”. O diretor da instituição, outras enfermeiras, uma milionária que busca se vingar desse diretor do local, um governador que só pensa na reeleição, sugando qualquer vida humana que se opuser a isso, dentre outros. A clara impressão que temos é que os ditos sãos são, na verdade, muito mais loucos do que aqueles confinados a espaços e torturas de uma época que via em elementos sádicos uma resposta e um caminho para a sanidade.

O que mais se destaca na narrativa da série é a humanização de Ratched, que começa como uma escrota de primeira linha, mas vai se modificando ao longo das situações pelas quais passa na vida. E, na verdade, fora a própria vida que a transformara numa pessoa de conduta condenável. Mas até que sua história pregressa apareça, fica difícil criar qualquer empatia por ela. Para ser sincero, é difícil criar empatia com qualquer ser humano presente nessa história (salvando-se um ou outro). Cada qual ali tem algo que nos afasta de suas decisões e de seu caráter. Outro ponto de destaque, em relação à técnica, é o figurino, a direção de arte e a fotografia. O verde e o azul sempre presentes nas cenas, junto com uma iluminação exagerada para algumas sequências, vão dando o tom de tensão e caos que os personagens vão experimentando ao longo da jornada. Tudo muito sensível e detalhado, em uma composição cuidadosa, digna de qualquer obra que leva o nome de Ryan Murphy nos créditos.
Por outro lado, nem tudo é assim tão bem-vindo ou impecável. Se a parte técnica é excelente, junto com um elenco primoroso, esbanjando boas atuações (em especial, Sharon Stone, no papel da milionária supracitada), já não podemos dizer o mesmo da técnica do roteiro: é impressionante como Ratched consegue controlar tudo ao seu redor imediatamente, quase como um jedi em seu poder de sugestão. Uma série de situações forçadas, ou mudanças repentinas e sem justificativa na personalidade de alguns personagens vão tirando um pouco aquela história dos trilhos que, em determinado momento, parece entregar algo diferente do que se propusera nos primeiros episódios. Uma paixão automática de uma assistente por uma besta wannabe (Edmund); a compaixão de Ratched por algumas pessoas (coisa que ela nunca chegou perto de demonstrar por quase ninguém); uma personagem com múltiplas-personalidades que aparece do nada e passa a ser a ponte principal para o decorrer da história, não dando qualquer indicação da sua ligação plena para com o alvo principal da nossa protagonista, mas que promove um turning point narrativo principal. São alguns detalhes, forçadas de barra e transformações sem base que fazem a obra dar uma chacoalhada.
Até mesmo o discurso tem seus momentos: por um lado, a loucura do sistema versus a loucura contra o sistema. A urgente e nada ultrapassada visão de que a homossexualidade é um problema de saúde mental. Apesar desse discurso minoritário bem-vindo, a indústria ainda não aceita em seus filmes um casal interracial que dê certo. Mas entre momentos de grande destaque e de falha muito à mostra, os elementos de tensão, loucura, de filme noir, de narrativa que mescla a filmografia de décadas atrás com toques mais modernos, Ratched consegue segurar seu espectador. Aqui não observamos apenas um voo ao ninho da loucura. O que de mais interessante há nessa série é o mergulho profundo à loucura trivial que perambula pelas ruas todos os dias, que nos dá bom-dia, que trabalha diretamente conosco e que está a cada esquina. Após seus oito episódios, ficamos com a plena certeza de que fomos forjados por loucos e de que vivemos na beira da loucura de um caos iminente.
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