Crítica: The Forty-Year-Old Version
Às vésperas de completar 40 anos, Radha está desiludida com os rumos da vida. Dramaturga premiada antes dos 30, ela vê sua carreira passar como uma promessa não cumprida enquanto consegue alguma grana para se sustentar dando aulas para adolescentes em uma escola. Na vida pessoal, o cinza dos dias permanece, a ponto de a maior excitação ser o fato de acordar de madrugada e escutar os gemidos dos vizinhos que transam no apartamento ao lado. Radha precisa desesperadamente encontrar um rumo e reencontrar sua voz. E ela descobrirá uma saída ao se reinventar como RadhaMUSPrime, a rapper cujas rimas denunciam a realidade e as dores do mundo e da dramaturga frustrada.
Escrito, dirigido e estrelado por Radha Blank – e legando a ela um prêmio de direção na última edição de Sundance -, The Forty-Year-Old Version é uma das boas pedidas do catálogo da Netflix. Com esse título que brinca com a aclamada comédia “O Virgem de 40 Anos”, de Judd Apatow, ele é uma daquelas joias escondidas com a qual o consumidor de streaming esbarra e acaba se surpreendendo pela sua originalidade, relevância e substância. Bom demais quando isso acontece.
Metaficcional, não deixando claros os limites do que é real e do que é recriação artística da vida da própria diretora e protagonista, o primeiro grande trunfo da produção é a reflexão afiada que ele traz. Legitimada por seu lugar de fala, a voz e o olhar que guiam o filme são atentos e sensíveis às questões que ele levanta. Assim, negritude, idade, sexismo, sexualidade e os estereótipos que os poderosos da indústria lançam sobre a produção artística das minorias sociais a fim de torná-la mais palatável às massas são exibidos na tela com a propriedade do discurso de quem vive e conhece essas pedras no caminho. É um conceito claro, preciso, que exibe com mais força o excelente trabalho de direção do longa.
Outro ponto no qual a produção manda muito bem é a construção das personagens secundárias. Todos são tão bem delineados, construídos com tantas camadas e competência, que o microuniverso narrativo brilha com a força da autenticidade. Dessa maneira, surge uma galeria de tipos humanos deliciosos que ganham vida através de um elenco forte, integrado e que dá o nome na performance. O mendigo sincerão que dá choques de realidade na protagonista, a vizinha idosa e faladeira, os alunos de Radha (há que se destacar a força do elenco jovem), Archie (Peter Kim), o agente e amigo gay de ascendência coreana da dramaturga desde a escola, D (Oswin Benjamin), o produtor das batidas dos raps e outras coisinhas que não falarei para não dar spoiler, são personagens que se corporificam com plenitude.
O roteiro também é precioso. O texto aguçado, inteligente, cria uma narrativa esperta, que flerta tanto com o drama quanto com a comédia, além de brincar com os limites entre o documentário e o pseudodocumentário. Visualmente, The Forty-Year-Old Version dá um show com a linda fotografia em preto-e-branco assinada por Eric Branco, que inova ao fazer um uso muito bonito das granulações. A trilha sonora perfeita impulsiona o poder de cada cena – aliás, faça um favor a si mesmo e vá agora ouvir Footsteps of a Queen, de Courtney Brian. A edição poderia ter sido um pouquinho mais rigorosa, seus 129 minutos não se ressentiriam se sofressem uns cortezinhos.
The Forty-Year-Old Version é um daqueles filmes que ficam no seu pensamento depois. É cinema de coragem, sensibilidade e força. É artístico no sentido mais impactante do termo, no sentido de ser uma obra única impregnada das digitais de seu criador. Radha Blank criou uma obra de arte humana e que só poderia ser criada por alguém que tivesse uma visão muito clara mas, acima de tudo, alguém que sentiu e viveu “a dor e a delícia de ser o que é”. No teatro, no cinema, no rap. Na vida.
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