Crítica: The Crown - 4a Temporada
“Senhor, que tolos esses mortais são!”. Puck, o gênio levado e atrapalhado de Sonhos de uma Noite de Verão, do bardo imortal, define com precisão quem somos nós, os tolos cheios de som e fúria. E é vestida como uma das criaturas mágicas da peça de Shakespeare que os olhares de uma certa adolescente chamada Diana Spencer e de um jovem e desiludido príncipe inglês, Charles, da Casa de Windsor, se cruzam no primeiro episódio da quarta (e mais esperada) temporada de The Crown.
Sim, meus súditos fiéis, a rainha está de volta e em grande estilo. Dez episódios perfeitos cravaram nesta leva o título de melhor temporada já exibida até agora da melhor série da Netflix. As minúsculas escorregadelas da temporada passada foram totalmente corrigidas e Peter Morgan nos entregou pure British perfection a la mode.
Abrangendo do final da década de 1970 até o início dos anos 90, a temporada vai marcar o impacto de três mulheres na narrativa: a Rainha Elizabeth, em determinado momento descrita como “o ar” que a família real respira, a Dama de Ferro, Margaret Thatcher, de sua ascensão à renúncia em 1990, e a “Rainha dos Corações”, Diana, Princesa de Gales, do primeiro olhar apaixonado, ainda adolescente, voltado a Charles até as crises, a bulimia e as dores que levaram ao fim de seu casamento dos sonhos.
Leitor Metafictions, que temporada! O requinte do texto de Peter Morgan e a excelência técnica de cada aspecto da produção já foram louvados em tudo que se escreveu acerca das temporadas anteriores e se mantêm impecáveis (na verdade, melhores até). Ainda assim, embora a qualidade já não seja surpresa, mas, sim, o que os espectadores já esperam, a série chega em 2020 conseguindo escalar novos e mais altos patamares.
Primeiro, narrativamente o texto exibe uma organicidade plena. Se na temporada anterior alguns episódios davam a sensação “colcha de retalhos”, nesta cada um desenvolve o seu plot com independência e simbiose com o todo ao mesmo tempo. É um crescendo narrativo que conduz a história e o espectador sem um único momento de tédio ou “barriga”.
Visualmente, o que era perfeito se transformou em sublime. A começar pela fotografia. Pautando-se tanto na luz quanto nas sombras, ela cria um efeito psicológico na cena que transcende o texto e os próprios atores e desvela, no lusco-fusco, o interior das motivações, das personagens, da alma da história. Uma sequência simples do 4º episódio, por exemplo, na qual a Rainha sai de carro, potencializa a atuação impecável de Olivia Colman apenas com sol e sombra batendo em seu rosto.
A trilha sonora também atinge novos degraus. Por um lado, nas sessões orquestrais, ela assume tons grandiosos e trágicos, como se antecipando ao espectador as desgraças que nós já sabemos que virão nas próximas temporadas, principalmente no que tange à uma ainda doce e ingênua Lady Di dos primeiros episódios. Por outro, ela recorre ao pop dos anos 80 para mostrar os descompassos da família real em relação aos meros mortais e em relação à jovem princesa.
Mas a joia dessa coroa está no trabalho de três atrizes, a nossa Rainha Olivia Colman (que se despede e passa o cetro para a poderosa Imelda Staunton para as duas temporadas finais), e as duas novas aquisições: Gillian Anderson fazendo de Margaret Thatcher o papel de sua vida e Emma Corrin, assustadoramente perfeita, como a Princesa Diana.
A Coroa tem precedência, então comecemos falando dela, protagonista absoluta, Queen Elizabeth. Além do mérito do texto, que ao abordar duas figuras tão importantes como Thatcher e Di, poderia incorrer na falha de eclipsar a figura da monarca e, cirurgicamente, não o faz nem por um segundo, é o poder de Olivia Colman que exala de cada cena, até nas que se faz fisicamente ausente. Nessa temporada, explora-se em profundidade as brigas entre suas partes Rainha/Mulher/Mãe/Esposa/Humana e Colman desenvolve cada uma delas com riqueza de camadas e profundidades. Perfeito, perfeito, perfeito.
A Dama de Ferro é a plataforma para uma atriz mostrar um talento de diamante. Gillian Anderson é Margaret Thatcher. Chega a dar medo ouvi-la e ver aquela imagem. Mas ela também nos mostra aquilo que a Thatcher real escondia: vulnerabilidade, medo, ressentimento. Sem pieguice, mas com pura humanidade. Cada cena dela com a rainha é um balé/luta/coreografia que ocorre no Universo quando duas Estrelas colidem e criam juntas.
Emma Corrin. Decorem esse nome. Atuação do ano. O desafio de encarnar na tela uma das figuras mais emblemáticas da História e um ícone visual do século XX era esmagador para dizer o mínimo. E ela excedeu qualquer alta expectativa que tínhamos para o papel. Sua Diana surge inteira, nos olhos que vão perdendo o brilho da adolescente vivaz para a tristeza total da princesa infeliz, sua voz passeia em inflexões que mostram a dor e a réstia de energia e esperança que tentava sobreviver dentro dela, seu corpo se transforma e vai amontoando em si os anos, o bem, o mal, a bulimia, o glamour e, acima de tudo, a solidão que se mostra fisicamente palpável nele. É uma atuação de deslumbre e agonia.
Os Emmy que lutem.
Agora, que tal um breve English Tea com as joias de cada um dos episódios. Pegue seus biscuits. Biscuits, not cookies, darling:
Episódio 1 – Gold Stick: Xadrez purinho, observe um tabuleiro se armando.
Episódio 2 – The Balmoral Test: A ópera surge, Diana, Thatcher e La Traviatta, um clássico de amor e desgraça, como trilha.
Episódio 3 – Fairytale: Não é genial mostrar a cena mais famosa do mundo sem mostrá-la?
Episódio 4 – Favourites: Colman, Colman, Colman e aquilo que seus pais não assumem.
Episódio 5 – Fagan: Que tal uma aula de como um homem comum se sentia na era Thatcher desempregado e ferrado? Ah, pode ser um homem comum que invade o quarto da rainha da Inglaterra? Pode ser também uma atuação primorosa? Emmy, anota aí, o moço se chama Tom Brooke.
Episódio 6 – Terra Nullius: Corrin, Corrin, Corrin, Rainha dos Corações, perto do povo, longe da firma.
Episódio 7 – The Hereditary Principle: Eta família para ter esqueletos no armário. Também conhecido como o episódio da Helena Bonham-Carter mostrando que, uma vez patroa, sempre patroa.
Episódio 8 – 48:1: Briga de cachorro grande, Colman versus Anderson. Mas o coração vai bater forte vendo uma certa rainha antiga.
Episódio 9 – Avalanche: Título autoexplicativo. Casos de Família, Windsor Edition.
Episódio 10 – War: Thatcher fecha, Diana se condena, a Rainha é o ar. E a gente lembra porque ama o Philip de Tobias Menzies.
God save the Queen! Netflix save The Crown!
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