Crítica: Mosul
Logo no começo do filme a gente já fica sabendo algumas coisas que servirão de base para tudo o que vai acontecer dali para frente. Mosul é a segunda maior cidade do Iraque. Nela, havia uma equipe policial criada com ajuda americana e chamada Nineveh SWAT, basicamente um pelotão de elite da polícia de Mosul que serviria para atividades contra-terroristas na cidade depois que os EUA se retirassem. Com a invasão do Estado Islâmico à cidade, essa equipe debandou da cadeia de comando e passou a atuar de forma independente, não mais como mantenedores da paz ou aplicadores da lei, mas como um implacável grupo de extermínio no combate ao EI. E, por mais incrível que isso possa parecer, é tudo verdade, conforme relatado no artigo da revista New Yorker no qual o filme é baseado (The Desperate Battle to Destroy ISIS).
Mosul é um filme produzido (pelos irmãos Russo), dirigido e escrito por americanos. Ao mesmo tempo, é um filme iraquiano, posto que completamente falado no dialeto árabe da região e estrelado por um elenco árabe (e espetacular). Essa mistura funciona e funciona bem demais. Só o cinemão americano é capaz de fazer uma produção dessa escala, com tamanho esmero técnico e trazendo uma narrativa universal, de fácil identificação com o espectador. Mas o mesmo cinemão americano seria incapaz de trazer a sensibilidade e o realismo cru que dar protagonismo e voz ao iraquiano foi capaz, sendo essa carga dramática responsável por fazer de Mosul não só um bom filme de ação, mas algo que, assim como toda obra do gênero que fica marcada em nossas memórias, vai além do trinômio tiro, porrada e bomba.
De cara somos jogados na ação, com dois policiais de Mosul sendo acossados por vários soldados do Estado Islâmico. Um deles, Kawa (Adam Bessa), é um jovem policial cujo tio acaba de morrer diante de si e é só por isso que Kawa acaba sendo recrutado à equipe SWAT: somente pessoas que perderam parentes próximos ou foram pessoalmente feridas pelo Estado Islâmico podem entrar na equipe.
Kawa acaba então servindo como “orelha” ao longo de todo o filme. Por ele ser novo e ainda não ter feito por merecer a confiança daquela equipe, é por meio dele que vamos entendendo toda a motivação e a razão de existir da temidíssima e respeitadíssima, ainda que também combalidíssima, SWAT. É um povo que perdeu coisas que nós, mesmo aqueles que vivem na pobreza e em situação de verdadeira guerra nas favelas espalhadas por esse Brasil, felizmente não temos como sequer começar a compreender, mas que seguem forte e determinados numa luta talvez inócua, mas que dá àquelas pessoas alguma gana de seguir vivendo. Ainda que seja somente para ceifar as vidas dos seus algozes membros dessa que é uma das organizações mais vis e verdadeiramente más da História desse planeta.
O fato de termos aqui uma equipe iraquiana como protagonista é um frescor enorme porque pela primeira vez (até onde eu me lembro) temos uma grande produção de ação militar sem que apareça nenhum babaca bem-alimentado e equipado dizendo que está lá lutando “pela liberdade e pela América” enquanto sua esposinha o aguarda no Winsconsin. Ora, não fode! Aqui temos pessoas reais que não se enganam sobre o que estão lutando, que não sofreram uma lavagem cerebral americana (outro produto típico dos EUA) sobre pelo que lutam. Eles sabem que a luta ali é pela sobrevivência, tanto de si próprio quanto de seus entes queridos e até mesmo da própria cidade na qual aquelas pessoas nasceram e aprenderam a amar, ainda que absolutamente arrasada pela ignorância, fanatismo religioso e ganância de um Estado Islâmico hipócrita que, mesmo pregando o oposto, invadiu Mosul para estuprar, matar, consumir e traficar drogas.
O roteiro de Matthew Michael Carnahan é simples e direto, assim como é também o seu estilo de direção. O americano mostra virtuosismo nas cenas de ação e a sensibilidade de entregar as cenas dramáticas aos seus atores. E que atores! O destaque absoluto vai para a figura quase messiânica do Major Jasem, vivido com uma verve espantosa por Suhail Dabbach, um cara que é capaz de passar sentimentos que eu nem sabia que eu tinha dentro de mim com só um olhar.
Montado de forma que remete bastante ao já clássico “Falcão Negro em Perigo”, Mosul acaba sofrendo um pouco do mesmo problema, no sentido de que a ação, ainda que bem coreografada e realista, acaba por se tornar um pouco repetitiva, o que talvez prejudique um pouco o ritmo do filme. O arco de desenvolvimento de Kawa, o novato na equipe, também me pareceu um pouco forçado devido à rapidez com que se dá, mas é algo relativamente justificável dada à urgência da missão.
No geral, contudo, temos aqui um puta filme, que vai além das amarras do seu gênero e deixa a sua marca de forma indelével.
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