Crítica: O Que Ficou Para Trás (His House)
Sempre falamos sobre filmes de gênero, nos quais há uma estrutura muito semelhante entre todos os títulos. Seja comédia romântica, seja terror, ambos caem numa mesma linha narrativa que, ao faltar cuidado ou delicadeza dos realizadores, faz com que a obra caia numa mesmice eterna que não leva a lugar nenhum; ou, pelo menos, a nenhum lugar antes explorado. O britânico filme de terror O Que Ficou Para Trás traz em sua sinopse a seguinte história: um casal se muda para uma casa nova para recomeçar suas vidas. Lá passam a ser perseguidos por um sem-número de almas penadas sedentas pela vida de um deles. E aí você diz: mais um dos exemplos dessa introdução. Errado. O Que Ficou Para Trás é tudo o que um filme de terror deveria ser.
De fato, é sobre um casal que se muda para uma casa nova e assombrada. Porém, esse casal é formado por Bol (em marcante atuação de Sope Dirisu) e sua mulher Rial (em preciso trabalho de Wunmi Mosaku), dois refugiados africanos que conseguem desembarcar na Inglaterra, ilegalmente, em busca de uma nova vida, fugindo da eterna guerra entre tribos que faz uma mesma nação (outrora destruída pelas potências europeias) continuar sendo destruída, agora por si própria. E essa mesma Inglaterra, que provocou décadas e mais décadas de desumanidade nesses territórios, agora trata com a mesma velha desumanidade aqueles que buscam nela um novo lar. Assim que chegam, eles são detidos em uma espécie de reformatório para refugiados, onde serão julgados e, geralmente, deportados. Cabe lembrar que o Reino Unido, ao lado da França, é o país que trata de maneira mais violenta esta questão (não à toa, os dois são os maiores alvos de atentados dentro da Europa).

Porém, a sorte parece estar ao lado dos bons. Bol e Rial conseguem uma chance no “dourado” velho mundo e recebem um casa “maior que a minha” (como dizem diversos personagens brancos ingleses ao longo da história) e algumas poucas libras para sobreviverem, sem poderem trabalhar, passear, viajar, receber qualquer convidado, fazer festa, jogar bola, ou qualquer coisa. Quase uma prisão domiciliar em uma casa em que a energia não funciona, o gás parece não chegar, o lixo se acumula rua afora e toda sorte de coisa que uma desumanidade travestida de caridade possa sugerir. Tentando lidar com a perda da filha, afogada durante a travessia do moderno navio negreiro, no qual africanos escapam da escravidão dos próprios africanos (dominados pelas potências) para adentrarem a escravidão do século XXI no velho continente, Bol quer se tornar um inglês, enquanto Rial permanece ligada à sua cultura e às suas tradições. Ele proíbe falar qualquer outro idioma que não inglês dentro de casa. Ele compra roupas e os veste como um ocidental. Ele queima tudo o que trouxeram de sua terra natal, justificando que aqueles objetos são a origem das almas penadas que atentam contra a vida do patriarca perdido.
Mas não. Bol erra. Os fantasmas que os perseguem são tão somente os fantasmas de seus passados, que não podem ser superados, esquecidos ou ressignificados. Além disso, essas assombrações tomam uma nova forma, com velhas práticas. Aqui, o terror do homem contra o homem é muito mais efetivo do que aquele promovido pelas assombrações impiedosas: “Volta para a África. Só ingleses aqui!” diz um grupo de britânicos negros para Rial, em uma ofensa declarada que não faz o menor sentido. Os garotos na rua chegaram onde Bol deseja: um novo homem, tendo sua origem esquecida e sufocada em prol de uma boa vida. Vida essa que só pode ser considerada boa se comparada às balas que perseguem etnias em um território já esmagado pelo grande porrete de outrora. Tentando lidar com tudo isso nas ruas e com as almas que são cada vez mais numerosas, Bol e Rial percebem que tanto uma coisa quanto a outra levarão ao sacrifício de suas vidas. E, então, o bruxo-entidade que tanto quer a vida de Bol, representando a cultura, a tradição, a presença da essência de cada um deles dois, pode ser vencido. Mas isso representaria tão somente a vitória europeia, uma vez mais, e agora de maneira definitiva: o casal não guarda mais qualquer contato com suas origens. São novos. São promissores. São um mosaico de dominação em meio a um território tão hostil quanto aquele de onde vieram. Apenas com outra roupagem.

Se, por um lado, temos a sinopse mais comum da história do terror: um casal que vai para um lar novo em busca de recomeço e precisa, então, lutar pela sobrevivência em relação às almas penadas que o persegue; por outro temos nessa excelente obra britânica a profundidade que toda obra deveria ter. Mantendo a estrutura de terror e mesmo assim conseguindo realizar diversas denúncias urgentes e atuais, Remi Weekes, em seu primeiro longa-metragem, faz aquilo que todo filme de terror deveria fazer.
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