Crítica: Mank (Mank)
“Não se consegue capturar a vida inteira de um homem em duas horas. Tudo que você pode esperar é deixar a impressão de uma vida”, reflete Herman Mankiewicz (Gary Oldman) sobre os limites do cinema enquanto, em meio ao alcoolismo que o mataria anos depois e todo quebrado por um acidente, tenta escrever o roteiro daquele que seria considerado por muitos críticos como o mais importante filme de todos os tempos: “Cidadão Kane”, de Orson Welles.
E que impressão é deixada por David Fincher em seu novo e esperado Mank, filme que mergulha no complexo roteirista e, muito mais que isso, apresenta uma meditação acerca de Hollywood, do cinema e da complexidade das relações humanas (e, é claro, da fofoca sobre a autoria do roteiro de “Cidadão Kane“, creditado – e o único Oscar dado à obra-prima – a Mankiewicz e Welles, mas cuja participação do último sempre foi contestada pelo primeiro). Que impressão e que filmaço, leitor Metafictions!
Neste tour de force cinematográfico, Fincher oferece uma coleção de acertos que, merecidamente, já o colocam como um dos frontrunners na conturbada e, até agora, diminuta temporada de filmes e premiações no mundo do COVID. Começando por um roteiro primoroso, assinado pelo pai do cineasta, Jack Fincher.
A magia principal do texto é a maneira como ele se comporta como um filme dos anos 40 e, ao mesmo tempo, como uma produção completamente contemporânea. Ao potencializar ao máximo os recursos significativos do pastiche, o roteiro de Mank perpassa camadas múltiplas de significação e expressão. Assim, ele flana entre o delirante e o melancólico, obtendo um resultado pungente, tanto na organização cênica, quanto nas três castas de construção do discurso: o pathos, o logos e o ethos. É um roteiro que escolhe mergulhar no mais fundo sempre, desde a (des e re)construção de figuras lendárias de Hollywood (o protagonista, Orson Welles, Louis B. Mayer e William Randolph Hearst, por exemplo) até a análise desencantada da atuação política da indústria dos sonhos, desembocando em diálogos com os nossos tempos.
Mas, acima de tudo, o roteiro impecável é um magnífico trampolim para que o diretor David Fincher exiba, mais uma vez, a robustez de seu trabalho e a clareza de sua visão. Fincher é uma daquelas griffes da sétima arte e, nesse que é, sem dúvida, um de seus melhores trabalhos, essa assinatura refulge. A magnífica fotografia em preto e branco de Erik Messerschmidt, a música potente dos oscarizados Trent Reznor e Atticus Ross, os figurinos, os cenários, toda a impecabilidade da produção converge para o olhar único e organizador do diretor. Mank, apesar de transitar pelos anos 30 e 40 da Old Hollywood, tem a crueza de um filme de David Fincher.
Só que, dessa vez, Fincher consegue ir além de si mesmo. Mank é um David Fincher, mas é, também, um Orson Welles. Se a focalização incide sobre o protagonista Herman Mankiewicz, o visual, os takes, o uso dos close-ups e dos planos abertos, até as lentes, tudo é feito em um estilo que homenageia Welles mas que, ao mesmo tempo, grita David Fincher. Bravo, maestro(s)!
Os créditos iniciais já exibem em letras garrafais o nome que “dá o nome” nessa produção. Acima do título do filme, lemos Gary Oldman. Leitor Metafictions, o Sr. Oldman fornece em Mank aquela que, se não for a melhor, é com certeza uma das três melhores performances de sua carreira. Seu Mank é erigido andar por andar como a construção de um ator dominando e sendo totalmente dominado por uma personagem. Cada olhar, cada inflexão de voz, cada movimento corporal é preciso e é pleno. Não há outro adjetivo que o descreva em cena a não ser – e ainda assim correndo-se o risco de estar abaixo do merecido – perfeito.
Como um capitão, Oldman joga com o restante do excelente elen23co e, juntos, brincam de atuar, no sentido mais potente do verbo em inglês, já que, na língua do bardo¸ to play é “atuar”, mas também é “jogar” e “brincar”. O elenco passeia pelos três sentidos, destacando-se, sem nenhum demérito aos outros membros do cast, Amanda Seyfried,na melhor atuação de sua carreira, como Marion Davies, a doce e cheia de camadas esposa do magnata da mídia e inspiração para o protagonista de “Cidadão Kane”, William Randolph Hearst, que, no corpo de Charles Dance (que, depois de “Game of Thrones” parece ter se especializado em gelar nossos ossos), oferece algumas das melhores cenas da produção.
Mank é uma obra-prima. E Fincher nos entrega um daqueles filmes que nos fazem relembrar como o cinema consegue ser duro, poético, belo e muito, muito humano.
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