Crítica: Soul
“Qual o meu propósito?” Sem dúvida, este é o questionamento que mais perdura durante essa jornada maluca e incrível que chamamos de vida. A indagação já serviu de assunto para incontáveis filmes, mas acredito que ninguém nunca imaginou que seria uma das discussões centrais de uma animação. Eis que a Pixar se aproveita desse conceito e lança seu mais novo, incrível e ambicioso projeto: Soul.
Por exatos 100 minutos, uma duração maior que o normal para filmes do estúdio, acompanhamos um dia na vida de Joe Gardner (voz original de Jamie Foxx/Jorge Lucas na versão brasileira), um pianista de jazz e professor de música que finalmente consegue um boost em sua carreira. Tudo parece correr bem, até que um acidente faz com que a alma de Joe literalmente saia de seu corpo e acabe num espaço onde almas “recém-nascidas” são desenvolvidas e treinadas para viver. Lá, ele é escolhido para ser o mentor de 22 (Tina Fey/Carol Valença), uma alma relutante que não enxerga o que há de bom em viver. É uma fusão de drama existencial e aventura com pitadas de comédia envolvidas num roteiro tocante, duas trilhas sonoras e uma reflexão universal, tudo perfeito para curtir com quem quiser. E sim, já revi ao filme dois dias após estrear.
Primeiramente, Pete Docter, seu desgraçado. Caso não lembrem desse nome, saibam que este é o gênio por trás de duas animações que, assim como outras da Pixar, requerem uma overdose de Rivotril: “Up: Altas Aventuras” e “Divertida Mente”. De novo, a magistralidade de Docter mexe com nossos corações e psicológicos, algo que não acontecia tão forte comigo desde seu último trabalho ao nos fazer conhecer nossas cinco emoções centrais. Agora, o autointitulado Nerd de Minnesota e atual CCO do estúdio entrega um roteiro, mais uma vez, brilhante e em parceria com Mike Jones e Kemp Jones, que também atua como co-diretor além de ser sua primeira vez dirigindo um filme. Que debut! Três mentes surreais unidas a inúmeros outros crânios para terminar a produção do longa em meio à pandemia do novo coronavírus. Já é difícil realizar uma animação, ainda mais agora com medidas de isolamento, mas conseguiram e foi um presente de natal incrível para os fãs do estúdio e assinantes do Disney+.
Voltando a falar sobre o roteiro e demais aspectos técnicos, a ideia por trás pode ser batida e levemente pretensiosa, mas temos uma trama que qualquer um se identifica, na qual o protagonista não sabe qual o seu propósito e, apesar de ter uma paixão esclarecida, não sabe se é ela o que o define ou o fará realmente feliz e completo. Além disso, contamos com a presença de vozes interiores e exteriores que fazem o protagonista e outros personagens duvidarem de seus dons em um nível maçante. A abordagem de tudo isso em um membro da comunidade artística permitiu que me identificasse bastante com a história, o que me emocionou por praticamente todo o filme. Outro fator que se destaca no roteiro é a pesquisa intensa que fizeram para representar os dois mundos. De um lado, temos Nova York, especificamente o bairro de Queens, onde Joe mora. Graças ao Conselho Cultural da Pixar, somos presenteados com uma interpretação extremamente realista que se estende até aos moradores e seus afazeres. Do outro, temos o “You Seminar”, onde tudo e todos têm formas abstratas, mas qualquer ideia absurda que já tivemos sobre as etapas do “processo de criação” da alma é representada de forma inacreditável e, assim como Nova York, complementada pela animação deslumbrante.
O elenco é estelar, além de perfeitamente escalado, e liderado por Jamie Foxx e Tina Fey. Como dito no início do texto, Foxx interpreta Joe Gardner, nosso protagonista cuja principal paixão é jazz, mas acredita que é isso o que o define, e o ator e cantor arrasa entregando um personagem extremamente acessível e humano, mesmo diante das circunstâncias extraordinárias introduzidas em menos de 10 minutos do início do filme. É por conta de tais condições que Joe conhece 22, a jovem e experiente alma trazida à vida de forma hilária por Fey, responsável por alguns dos momentos mais engraçados do filme, porém, a atriz e comediante traz uma vulnerabilidade linda para 22 que não tem como não se emocionar, especialmente em cenas com Joe ao seu lado. A química entre ambos é muito boa e ela se repete na versão brasileira ao som de Jorge Lucas e Carol Valença, que também realizam um ótimo trabalho.
Por fim, uma das forças motrizes da animação que até serve de personagem: a música. Mencionei no início que há duas trilhas sonoras e esse fato é um de seus componentes mais originais e talvez o mais criativo de todos os filmes do estúdio. Uma delas é a utilizada no mundo das almas, composta por Trent Reznor e Atticus Ross. A dupla da banda Nine Inch Nails, aclamada por seu trabalho em “A Rede Social” e na minissérie “Watchmen”, cuidou do lado psicodélico e etéreo das músicas quando os personagens tanto se encontram no “You Seminar” quanto quando fazem referências a ele. A outra trilha sonora, quando Joe está em seu “happy place” e em Nova York, é 100% jazz e criada pelo compositor Jon Batiste e é meu elemento narrativo preferido da história. Nos bastidores do filme, Batiste comentou que sua intenção era desenvolver um jazz para ouvintes “iniciantes”, que aparentemente não o apreciam por completo. Acredito que conseguiu tanto nessa missão quanto na de explicar o quanto o jazz é importante na vida do protagonista, algo que “La La Land” tentou atingir, mas com pouca intensidade. Sinto muito pelos fãs do musical de Damien Chazelle (eu mesma sou fã), mas Soul faz isso de uma maneira muito mais impactante e, francamente, poética. Ambas as trilhas merecem reconhecimento, mas a de Batiste é algo excepcional.
Depois de várias lágrimas derramadas, esta obra-prima transcendental termina com uma dedicação a “todos os mentores em nossas vidas” e é assim que encerro o texto: dedicando-o a todos os meus mentores, especialmente os do Metafictions. Em meus três anos escrevendo aqui, cresci como pessoa e em meu trabalho e devo muito desse crescimento a eles. Muito obrigada e que o 2021 de todos nós seja melhor que este ano complicado. O que importa é que sobrevivemos e valeu a pena!
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