Crítica: Sweet Home

O ano de 2020 serviu – em seu lado positivo – para mostrar ao mundo algo que venho falando há muito (não que eu tenha algum valor nessa minha fala ou que seja um visionário; na verdade, só via o óbvio mesmo, os demais que não se tocavam): a Coréia do Sul é a parada! Não só o melhor filme da década, “Parasita“, passou o rodo nos principais prêmios da cinematografia mundial, como também – essa semana – Son Heung-Min levou o prêmio Puskas de gol mais bonito da temporada (desbancando, com toda justiça, a canelada do Arrascabola). Sabedora disso – e nada boba – a Netflix passou a investir, mais e mais, em produções do país, seja em filmes, seja em Doramas (séries orientais). Após lançar a excelente obra de zumbi “#alive“, o streaming investiu em 10 capítulos de um dorama original Netflix, inspirado em uma webtoon. Sweet Home visita lugares semelhantes de “#alive” e “Invasão Zumbi”, mas sob uma outra perspectiva.

Um grande edifício (estilo os “Piranhões” aqui do Rio de Janeiro) passa a ser o refúgio secreto de seus moradores quando uma espécie de contágio começa a assolar (a princípio) a Coréia do Sul: seres humanos se tornam monstros, devorando toda a forma de vida que encontram pela frente, sejam humanos, sejam outros monstros. Alguns sintomas surgem que sugerem uma transformação em pouco tempo. O governo orienta a quem os sentir se isolar dos demais (olha o sino do isolamento batendo forte, novamente, na Arte). Diante do caos lá de fora, os moradores iniciam uma espécie de assembléia nas coxas para tentar manter uma ordem que fragilmente balança no fio da navalha. Lá dentro, monstros surgem e a sobrevivência passa a ser a regra de cada minuto: racionamento, organização e aliança contra os monstros são apenas alguns dos obstáculos, sendo o próprio ser humano o principal deles.

A luta de cada um.

A série lembra muito a pegada de “Nevoeiro” (filme e série baseados na obra de Stephen King), com a diferença de que a produção sul-coreana é muito boa, coisa que os inspirados em King não foram. Principalmente pela construção de seus personagens. Se há algo em que Coréia e EUA se diferenciam muito nas histórias é em relação à maneira em que seus personagens são lapidados. Enquanto o ocidental – em especial o americano – busca arquétipos, estereótipos exagerados que marcam muito claramente discursos pobres em suas encarnações, o sul-coreano junta os extremos e produz algo muito mais próximo do real: todos somos santos e pecadores a um só tempo. Nas obras coreanas, todos os envolvidos são bons e ruins, todos têm motivações para o que fazem ao passo que, ao mesmo tempo, estão errados em fazê-lo. E esse é um grande destaque de Sweet Home, com personagens extremamente carismáticos, com toda uma história por trás, fazendo-nos ficar ligados a cada um deles. E, entre esses sabores e dissabores, tudo dentro deles pode sugerir a transformação monstruosa a qualquer momento… ou não. E quando descobrimos que se tornar um monstro tem a ver não com uma substância que os contamina, mas com o desejo que carregam, aí a narrativa ganha proporções tão maiores do que parecia em seus primeiros capítulos.

Apesar de termos um personagem principal, Hyun Soo (em boa atuação de Song Kang, de “Love Alarm”), às vezes parece que nenhum é o principal ou que todos são, ao mesmo tempo. Ele é um jovem que deseja tirar a própria vida, mas que, diante da situação de destruição total, começa a lutar pela vida, a própria e a dos seus vizinhos. Nosso editor-chefe, Gugui David, em um de seus não raros momentos de brilhantismo, certa vez dissera: “já percebeu que as maiores taxas de pessoas que tentam tirar a própria vida vêm de países mais próximos da perfeição em termos de desenvolvimento humano? Em regiões da África, onde há guerra civil, fome, sede, não há isso. Quando você tem uma guerra para travar, você vai lá e luta”. E Hyun Soo é exatamente isso: alguém que estava desistindo de viver, mas que, diante da assombrosa vivência, busca forças dentro de si, batalhando com seus demônios internos e externos, para seguir ajudando a si mesmo e aos outros. Aquela narrativa que parecia ser só mais uma da mesma, começa a andar por lugares muito além.

Contra todos.

Para quem pensou que essa seria mais uma história de zumbis (apesar de não serem zumbis, efetivamente), Sweet Home é mais uma história forte sobre a natureza humana, trazendo antigas alegorias para retratar o que de mais sombrio há dentro de cada um de nós. Os temas de sobrevivência, caos e mundo pós-apocalíptico retornam, mas sempre com uma carga dramática bem feita e definitivamente marcante, contando com muito estilo e uma trilha sonora excelente. Mergulhe sem travas nesse universo devorador e nada doce. Aprenda a contar uma história com os coreanos. E – não à toa – aprenda com eles a jogar futebol.

Son Heung-Min.

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