Crítica: Teocracia em Vertigem
Embora muita gente não deva se lembrar, há mais ou menos um ano, a sede da produtora Porta dos Fundos foi alvejada com coquetéis molotov, depois que supostos grupos cristãos se indignaram com o especial de Natal então intitulado “A Primeira Tentação de Cristo”, muito por conta da presença de um personagem homossexual na sátira. Mais de duas milhões de assinaturas foram recolhidas com o intuito de pressionar a Netflix pela retirada do filme da plataforma com a consequente judicialização da tão nefasta heresia.
Como graças a Deus (Deus?) ninguém morreu, ninguém foi preso, ninguém foi amordaçado e não é só de Netflix que se vive o homem, cá estamos, ao fim do pandêmico ano de 2020, ainda livres para dar play no Youtube e conferir a mais nova paródia bíblica de um grupo mais do que consolidado e bem sucedido quando o assunto é apertar calos, esfregar feridas e estampar na nossa cara o carrossel de escárnios no qual esse país veio a se transformar ao longo dos últimos tempos, sem dar palco pra maluco.
O formato é bem simples e de fato lembra bastante o documentário brasileiro que concorreu ao último Oscar, “Democracia em Vertigem“, dirigido por Petra Costa (que é convidada especial, inclusive). Satirizando a trajetória de Jesus Cristo ao longo do ano 33, no período compreendido entre a sua crucificação e a ressurreição, o formato documental profano recolhe depoimentos de diversos personagens bíblicos que vão tentando montar um quebra-cabeça sobre o real paradeiro do Messias que viraria mito.
Como a própria divulgação do filme fez questão de frisar, a vida e obra de Jesus Cristo passa por uma infinidade de boatos, conspirações, injúrias, provocações e fanatismo. Seria ultrajante pensar que o maior de todos líderes, munido de um carisma inigualável, altruísta por vocação, bom samaritano e destacado pelo apreço com as causas ligadas aos direitos humanos, foi o grande responsável pela polarização da Galileia? Teria Jesus sofrido um golpe?
Uma overdose de referências do nosso cenário político caótico é embutida no roteiro e conduzida pela narração de Clarice Falcão, que nos guia pela tentativa frustrada de compreender os pormenores que culminaram na crucificação de Jesus (Fábio Porchat) através dos relatos de muitos daqueles que passaram pelo seu caminho em vida, desde Maria (Evelyn Castro), Judas Iscariotes (Daniel Furlan) e Maria Madalena (Thati Lopes) a Barrabás (Renato Góes) e José de Arimatéia (Rafael Portugal).
A obra de pouco mais de cinquenta minutos conta ainda com um elenco repleto de participações especiais que vão das grifes de Emicida e Teresa Cristina, passam pela pompa global de Marcos Palmeira, Helio de La Peña e Raphael Logam, fechando com o carisma dos maiores representantes do transporte alternativo do Rio de Janeiro. Só a nata da esquerda festiva.
A produção é muito bem feita e conta com toques refinados de fotografia e figurino que foram perfeitamente alinhados, como já vem sendo, há muito tempo, nos vídeos épicos do Porta. Reparei também que edição e direção se preocuparam em não engessar o ritmo da narrativa que foi quase toda construída com apenas um ator em cena. Foram bem sucedidos e não contaminaram ninguém com a gripezinha.
De tudo o que foi apresentado, o que mais impressiona, de longe, é a capacidade genial de linkar as referências diretas dos trágicos acontecimentos recentes da história do Brasil com as críticas àqueles que se usurpam de preceitos bíblicos em nome de uma fé que segrega, afasta, oprime e mata. Com a engenhosidade de uma mãe que coloca a papinha na boca da criança, o roteiro alimenta o espectador com a certeza de que se Jesus voltasse, provavelmente ele não chegaria nem perto dos trinta e três anos. Pelo contrário. Teria a sua morte inflada justamente por aqueles que se dizem “de bem”.
Até mesmo a desastrosa sequência musical dos minutos finais, que teria ficado cem vezes melhor na mão do Adnet em algum daqueles programas da MTV, consegue dar umas chacoalhadas muito bem dadas ao metaforizar que Jesus teria tentado voltar como mulher, negro e travesti, mas depois de ser morto em todas as ocasiões, cansou. Não volta mais. Já deu. A gente que se vire.
E pra quem gosta de caça-palavras, pescar referências pode ser um ótimo exercício. São obrigatórias: impeachment da Dilma, vice decorativo, guardiões do Crivella, carta do Temer, laranjal do Queiroz, tatuagem do Onyx, rachadinha, gabinete do ódio, power point da lava-jato, provas vs convicção, condução coercitiva, reunião ministerial e gado arrependido. Parei de contar.
Não assista!
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