Crítica: A Voz Suprema do Blues (Ma Rainey's Black Bottom)
A Netflix acaba de incluir em seu catálogo o interessante A Voz Suprema do Blues, um filme que se prende a uma linguagem de teatro, mas não tem o seu ritmo comprometido, muito por conta da potência dos monólogos. Essa é uma daquelas obras com roteiro simples, mas repleta de personagens tragicamente profundos. Se você é apreciador de textos e interpretações, temos aqui um prato cheio.
O enredo busca reverenciar a cantora Ma Rainey (Viola Davis), conhecida como “Mãe do Blues”, cujo nome e música batizam o título original em inglês. No final da década de 1920, a estrela está prestes a produzir um novo disco em um estúdio em Chicago, em conjunto com a sua banda formada por três membros principais, Toledo (Glynn Turman), Cutler (Colman Domingo) e Slow Drag (Michael Potts), músicos veteranos habilidosos, instintivamente programados para tocar o que Rainey mandar.
Assim que o ambicioso trompetista Levee (Chadwick Boseman) entra em cena, logo percebemos que ele e a protagonista serão os fios ativos da trama e que o restante da banda se encaixará na história de uma maneira mais pragmática, porém eficaz. Levee claramente tem pretensões maiores do que as de um simples músico de apoio, mas a mãe do blues não permite qualquer tipo de interferência externa nas suas decisões tomadas a partir de uma posição hierárquica conquistada na marra, graças ao seu talento.
Então, para olhos mais preguiçosos, A Voz Suprema do Blues é um filme sobre músicos de blues que se juntam para gravar algumas canções, num dia quente de verão em Chicago, no ano de 1927. No meio disso, um trompetista abusado e uma cantora arrogante resolvem travar uma guerra fria inútil, tendo em vista que a corda só poderia arrebentar para o lado mais fraco e mais óbvio.
Na prática, há temas mais complexos de injustiça social que ainda ecoam na sociedade até os dias de hoje, mesmo depois de quase cem anos. Esse filme simboliza a experiência dos negros americanos no início do século XX e não há melhor lugar para começar a contar esta história do que pelo próprio blues, narrando dores, fugas, desejos e as formas de expressão que esse povo encontrou através da arte.
Não é coincidência que o blues tenha surgido no final do século XIX, quando as pessoas negras escravizadas foram, supostamente, libertadas da escravidão. Embora as restrições físicas em seus corpos possam ter sido eliminadas, as violações de garantias produzidas por uma sociedade imersa no racismo estavam só começando. O blues sempre foi refúgio.
É fazendo esse gancho entre música e resistência histórica que surgem os monólogos ilustrando as experiências de Levee, de Ma, de Toledo… Quando Levee descreve o testemunho da terrível violação da sua mãe por uma gangue de homens brancos, o discurso ganha uma potência absurda ao confrontar a religiosidade de Cutler, como se não houvesse justiça divina, reduzindo a distância entre ator e espectador, já que esta atuação se tratava do “canto do cisne” de Chadwick Boseman, que já batalhava contra um câncer.
Se o desempenho turbulento e deslumbrante de Viola Davis passa pela raiva e resignação da sua personagem, coberta por uma maquiagem berrante, por dentes de ouro reluzentes e uma considerável camada de suor permanente, Chadwick Boseman praticamente urra de dor e ansiedade, comprometendo-se com as cenas de uma maneira tão feroz que as emoções soam reais. O caminho para a autodestruição do personagem é seguido com o vigor de quem sabe que vai morrer.
E, por isso, talvez por isso, o momento mais impactante do filme seja justamente causado pela obsessão do seu personagem por uma porta, como um pesadelo capaz de simbolizar o futuro de Levee, enclausurado debaixo do céu, sucumbindo à ira imposta pelas suas próprias cicatrizes. A Voz Suprema do Blues é uma obra crítica e estimulante o suficiente para marcar com muito bom gosto a volta do Pantera Negra para Wakanda.
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