Crítica: O Tigre Branco (The White Tiger)

Há alguns anos, quando eu ainda tinha o infortúnio de estar militando no Direito – se há reino profissional mais eivado de vaidades eu não conheço -, eu ouvi uma “colega adEvogada” de muito sucesso – cria da PUC, aluna do Santo Agostinho e moradora de Ipanema – me narrar que tal dia na casa dela a Mari, como ela muito carinhosamente chamava a sua empregada doméstica que dormia em casa e a quem ela havia terceirizado a criação dos filhos, havia feito um bobó de camarão divino, de comer rezando. A conversa foi avançando e, numa mesa com mais algumas pessoas com o mesmo perfil – à minha exceção de moleque da baixada, filho de professora com funcionário do Banco do Brasil, universitário que passou de segunda na reclassificação para o segundo semestre em uma Federal que ninguém queria -, sem pudor nenhum essa mesma criatura conta, com toques de orgulho, que esse mesmo bobó de camarão divino que a “Mari” fizera não fora almoçado pela Mari, uma vez que “não vou desperdiçar camarão com empregada.” Mari comeu arroz, ovo e carne moída, uma refeição excelente, diga-se de passagem, mas que não apaga a ofuscante e repugnante realidade do sistema de castas velado em que vivemos.

Essa anedota, meus queridos, epitomiza o que é O Tigre Branco, a mais nova e excelente produção Netflix, em uma colaboração indo-americana que conseguiu encontrar um meio termo perfeito entre as duas linguagens cinematográficas. A história que narrei acima, assim como tantas outras que vocês provavelmente testemunharam, sofreram ou até mesmo perpetraram, resume exemplarmente as relações sociais. O longa pega o sistema de castas indiano como um ponto de partida ideal para fazer uma crítica a basicamente tudo. O Tigre Branco é, portanto, “Parasita“. E Parasita é O Tigre Branco.

Felizmente, o cineasta americano descendente de iranianos Ramin Bahrani conseguiu dar sua própria cara a O Tigre Branco, passando bem longe da estética visual e roteirística da obra-prima coreana, sendo certo que muito disso acontece pelo trabalho nada menos do que estupendo de Adarsh Gourav na pele de Balram, um sujeito de uma casta baixa na Índia, mas que desde muito cedo mostra uma astúcia e ambição que, sob o risco de soar racista, são incompatíveis com sua casta.

Esse risco de soar racista, contudo, é plenamente justificado quando analisamos tudo que o longa nos traz, posto que esta incompatibilidade não se dá por alguma espécie de imperativo biológico que impediria um Halwai – a casta de doceiros (fodidos) na qual nasceu o protagonista – de querer mais, de ter ganas de buscar melhorar a sua vida e de sua família, mas, sim, porque todo o sistema é estruturado justamente para que a casta dele, assim como quase todas as outras das milhares de castas indianas, sequer cogite que possa haver algo diferente, algo melhor no horizonte. E pensar que qualquer outro sistema, inclusive o nosso, existe para qualquer outra coisa que não para manter no topo quem lá já está é de uma ingenuidade comovente.

Balram, mesmo sendo uma pessoa extraordinária dentro de sua casta, não deixa de ser um produto da sociedade a qual pertence. É difícil até mesmo para ele, como é para todos nós, entender que pode ser que haja alternativas, que ele não está (ou não deveria estar) irremediavelmente preso naquele ciclo eterno e deletério para o miserável no qual sua principal ambição só pode ser servir da forma mais subserviente possível o seu mestre ou sua família. É por isso, por ter essa certeza, que passamos 90% do filme vendo um sorrisinho amarelo estampado no rosto de Balram, um sorriso que não está ali apenas por ser a única alternativa que ele conhece para agradar o patrão e assim sobreviver, mas para esconder toda aquela miríade de sentimentos ruins que cozinham dentro de si, sentimentos estes que ele mal sabe identificar.

A poderosa, pesarosa e convicta narração de Balram de seu conto é feita ainda mais pujante e impactante pelo excepcional texto de Aravind Adiga, autor do livro que foi adaptado pelo próprio diretor, cheio de aforismos – “O rico nasce com oportunidades que pode desperdiçar” – de uma simplicidade até mesmo óbvia, mas que precisam ser ditos para dar em nossa cara os tapas que todos merecemos tomar. O virtuosismo do roteiro também se mostra claro no arco de evolução e desenvolvimento do personagem principal, mudando completamente o tom e o sabor do filme conforme Balram vai entendendo quem ele é e, principalmente, como as coisas são. Aqui, mais uma vez, se destaca o formidável Adarsh Gourav como Balram.

Temos aqui, portanto, um filme fabulosamente bem escrito, com um protagonista atuado de forma magistral, um elenco de apoio azeitadíssimo, trilha sonora acertada, fotografia de uma competência belíssima, mas que peca só um tantinho em seu ritmo. Já é, e falo aqui com tranquilidade, um dos melhores filmes do ano.

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