Crítica: Pieces of a Woman

“… Ah! no entanto,/Pomba, — varou-te a flecha do destino!/Astro, — engoliu-te o temporal do norte!/Teto, — caíste!/ — Crença, já não vives!”

O “Cântico do Calvário” é um dos poemas mais tristes e belos da literatura brasileira. Nele, o romântico Fagundes Varela despeja em versos toda a dor e desesperança que corroem o seu mundo depois que seu filho morreu. Perder um filho é uma hecatombe tão cruel na vida de seus pais, que nem a língua ousou criar um vocábulo para defini-los depois disso. Um filho que perdeu seus pais se torna um órfão. Mas e os pais que perderam seus filhos? Nem nome essa dor possui.

Martha e Sean (Vanessa Kirby e Shia LaBeouf) estão no momento mais importante de suas histórias: a chegada da primeira filha. Um parto domiciliar, planejado para trazer a criança ao mundo em um ambiente de máximo acolhimento terminará, porém, em tragédia. Pieces of a Woman, de Kornél Mundruczó, vai mostrar a longa, dolorosa e transformadora odisseia de Martha ao longo do primeiro ano da desgraça, tendo de lidar com a morte da filha, seu luto, a degradação do seu casamento, um drama de tribunal tendo a parteira como ré e a sua relação delicada com sua própria mãe, a dominadora Elizabeth (Ellen Burstyn).

Leitor Metafictions, prepare-se para um filme soco no estômago. Mundruczó e sua roteirista, Kata Wéber, criaram uma produção que, em nenhum momento, se mostra disposta a edulcorar a dor para poupar o espectador. Não. É uma sucessão de cenas de impacto, profundas e capazes de machucar, que constroem uma cartografia de uma mulher em busca de redefinir seu lugar na própria vida ou, como aponta o título, juntar os seus pedaços.

O primeiro grande ponto de impacto do longa é a sua crueza. Já começando com uma primeira sequência que há de ser lembrada como uma das aberturas mais perturbadoras em um filme, o parto de Martha, Pieces of a Woman é de uma sensibilidade agreste, sem adornos. Os diálogos do roteiro ampliam esse escopo ao serem extremamente fortes e sem filtros. Além disso, a contundência das palavras ditas é reforçada ao conviver com cenas que, vindas logo após verdadeiras porradas verbais, se valem do máximo de silêncios para se sustentarem. A bela fotografia de Benjamin Loeb cria imagens de bastante apelo visual, principalmente quando sobrepõem o frio climático das cenas externas ao frio ainda maior e metafórico das cenas internas. Um único ponto destoante nesse projeto foi a trilha sonora que, a meu ver, faz uma outra interferência dispensável, tirando o poder de certos momentos em que o silêncio reverberaria mais que os sons.

A direção de  Kornél Mundruczó é preciosa. Sua visão clara e certeira traz um senso de unidade à produção que mostra que, sob sua regência, toda a equipe tocou a mesma (e boa) sinfonia. Dos movimentos inusitados de câmera, do uso interessante do foco/desfoco ao trabalho artesanal e milimétrico da direção dos atores, Mundruczó, que eu lembrava do interessantíssimo “Deus Branco” (vejam essa beleza, trailer aqui), realmente assina um filme.

Agora precisamos falar do elenco. Antes de dedicar um parágrafo exclusivo para a protagonista, há que se destacar dois nomes. Primeiro, a magnífica Ellen Burstyn. Como Elizabeth, a veterana atriz mostra que está no domínio máximo do seu ofício. Cada cena sua é um exercício bem-sucedido de construção de personagem, de uma atriz que encarna cada camada daquela mulher. É um trabalho magistral e o espectador experimenta uma gama de sentimentos por ela, da vontade de dizer umas poucas e boas à empatia plena. Muita técnica e muita emoção. Atriz plena. Já o Sean de Shia LaBeouf impacta pela vulnerabilidade total que o ator entrega nele. É uma pena que as polêmicas nas quais LeBeouf se meteu na vida eclipsem muitas vezes o julgamento que muitos fazem de seu trabalho. Aqui ele entrega uma atuação muito pungente e poderosa.

Mas o filme pertence mesmo a Vanessa Kirby. Se em “The Crown” ela já havia conquistado o mundo com a sua maravilhosa Princesa Margaret, não é nenhum exagero dizer que aqui em Pieces of a Woman ela entrega a maior atuação de sua carreira até agora. Selo Meryl Streep de qualidade nela! Indicação ao Oscar no mínimo!

Kirby faz de Martha um ser humano em toda a sua integralidade. É um trabalho de nuances, de olhar, de consciência corporal (é incrível ver as marcas do sofrimento da personagem sendo impressas na sua expressão corporal, no seu andar, na voz). O que se projeta na tela é uma atriz se valendo de uma miríade de ferramentas que só as melhores possuem. É visceral (no sentido mais distante da banalização que esse adjetivo tomou e no mais próximo de sua etimologia), é minucioso, uma verdadeira ourivesaria das artes cênicas. É impossível não ser tocado pela dor e a força da personagem entregues pela performance irrepreensível e emocionalmente esmagadora de Vanessa Kirby.

Pieces of a Woman é cinema de emoção, de dor e beleza triste. Mas é também uma mensagem de que enquanto estivermos respirando há que buscarmos forças que nem sabíamos que existiam em nós.

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