Crítica: Cidade Invisível
Quando eu comecei a jogar RPG, bem no início dos anos 90 do século passado, havia dois jogos em português, ambos publicados pela mesma editora. O primeiro, Tagmar, se passava em um tradicional mundo de fantasia europeia, com elfos, anões, dragões e gigantes. O outro, chamado “O Desafio dos Bandeirantes” se passava no Brasil do século 17, e contava a história de navegadores portugueses, padres jesuítas, africanos escravizados e nativos americanos se aventurando pelas densas florestas virgens desse país de dimensões continentais, esbarrando nos espíritos ancestrais de tal terra misteriosa. Eu me lembro de ler o livro e encontrar referências ao Saci Pererê, ao Curupira, ao Boto, à Cuca, todos descritos com a seriedade com que os seres místicos e de contos de fadas europeus eram descritos nos livros de Tolkien e companhia. O problema, para mim, era que toda a minha referência do nosso folclore se limitava ao Sítio do Pica-Pau amarelo de Monteiro Lobato segundo aquela versão que a Rede Globo produziu quando eu era criança. Aqueles personagens que, em algum momento no tempo devem ter aterrorizado as noites nas fazendas de cana e café, ali eram mostrados com uma roupagem “fofinha” para o público infantil e eu não conseguia vê-los como os seres assustadores que devem um dia ter sido.
Ao tomar conhecimento da série Cidade Invisível, senti grande satisfação e curiosidade. Finalmente alguém tentaria fazer jus a toda a Mitologia Brasileira, que nós apelidamos carinhosamente de “Folclore Popular”. Uso a palavra mitologia em maiúsculas apenas para chamar a atenção da deferência que tais mitos deveriam ter recebido ao longo da nossa história. Não há uma real diferença entre tal mitologia e a grega, ou a nórdica, ou qualquer outra que tenhamos importado em livros ou filmes. Apenas nos acostumamos a olhar pra ela, a nossa, com o mesmo complexo de vira-lata que sentimos ao olhar pra tudo o que é nosso e que de fato merece admiração. Tal discurso ufanista vem de alguém que sentiu, ao longo da vida, muito pouco motivo pra sentir orgulho de alguma coisa relacionada a sua origem nacional. Não são as praias paradisíacas, as festas populares regadas a cerveja e batuque, ou as vitórias da seleção que me enchem os olhos nessa terra. Esses contos que deveriam já ter sido explorados com a dignidade que merecem é que sempre me deram um senso de pertencimento a algum lugar.
Coube a Carlos Saldanha, famoso diretor das animações “Era do Gelo” e “Rio”, adaptar tais lendas em uma série moderna. Saldanha já mostrou todo o seu carinho e empenho em apresentar o Brasil pro público internacional quando nos levou com a arara azul Blu em sem primeiro voo, planando sobre um Rio de Janeiro lindamente colorido em 3D e, agora, aventura-se por um tema mais sério. Na série, vemos os nossos personagens folclóricos escondidos nas vielas e sobrados da Lapa, tentando sobreviver em um mundo moderno que parece ter se esquecido deles. A premissa é simples, o policial ambiental Eric (Marco Pigossi, ator Global que recentemente alçou vôos internacionais como Fabio em “Tidelands”) perde a esposa num incêndio e, inconformado, busca respostas para o que parece ter sido mais que um acidente. Suas investigações o aproximam de um submundo onde os seres folclóricos brasileiros realmente existem.
A premissa, que me remete a “Deuses Americanos” e “Fables”, é legal. Não muito original, mas legal mesmo assim. E a primeira vez que vemos personagens brasileiros em tal universo e não vampiros, fadas, escolas de magia, escolas de fadas, escolas de vampiros, vampiros na escola… Os efeitos especiais necessários estão todos ali e todos de muito bom gosto. O Curupira é particularmente belo de se ver na tela, com seus cabelos em chamas correndo e gritando pela floresta. Há uma busca por trazer a série para um público mais adulto, com temática séria, flertando com o suspense ou terror, e é o tipo de história onde um certo “pós-Game-of-Thrones” funcionaria muito bem. Há muita violência e muito sexo na mitologia brasileira. O Boto seduzindo as moças nas beiras dos rios, Iara atraindo marinheiros para a morte, Cuca raptando crianças que se recusam a dormir.
A série tenta e, em alguns momentos, acerta no tom maduro, mas há uma estética de novela das oito que é difícil de ignorar. Toda a trama se passa entre a Urca e a Lapa, no Rio de Janeiro, em algumas poucas locações que se repetem ao longo de toda a temporada. Por que, novamente, uma história Carioca? Por que não levar a produção pro nordeste ou, melhor ainda, pro norte do Brasil? Por que não aproveitar que mostravam algo tão pouco visto pelo público brasileiro como nosso próprio folclore para mostrar outra coisa muito pouco vista pelo nosso público: O Brasil? E o Brasil que não aparece nas novelas de Manoel Carlos. Toda a estética visual é de novela: a iluminação, fotografia, cenografia (ainda que tudo tenha uma execução técnica de primeira qualidade). O elenco espetacular (Alessandra Negrini está excelente como a misteriosa Inês, Jimmy London, da banda Matanza, parece tirado das páginas de algum conto de Neil Gaiman, e a dupla Wesley Guimarães como Isac e Fábio Lago como Iberê dão um show de carisma) parece por vezes ter a liberdade de fazer o que sabe fazer de melhor, por vezes parece dirigido em atuações melosas de folhetim.
Além disso, os personagens seculares do nosso folclore têm suas origens (quase todas imaginadas de forma bem bacana) contadas como se tivessem surgido em algum momento no século 20. Com exceção do Saci, cujo passado nos leva aos tempos da senzala e, mesmo assim, poderia ter sido 10% mais violento (e eu não gosto de violência gratuita, mas é uma cena que permitia tais exageros). Todas as outras entidades parecem ter aparecido no dia anterior. Isso foi algo que me custou um pouco da suspensão de descrença e, somando-se aos vários momentos em que eu me sentia transportado para alguma novela ou minissérie televisiva tradicional, peguei-me mergulhando menos fundo na história do que eu gostaria de ter ido. A série é boa, não me leve a mal. Tem um ritmo legal e eu assisti com satisfação ao longo do domingo. Vale mesmo que seja para vermos aqueles personagens do Monteiro Lobato aparecendo um pouco mais próximos do que nossos antepassados devem ter imaginado quando se borravam de medo ao redor de uma fogueira numa dessas matas. Traz sim a dignidade que nossa mitologia já merecia ter recebido e oferece mais uma produção nacional de primeira qualidade. Eu espero que a segunda temporada venha. Mas espero que venha sem receio de dizer ao que veio. Sem medo de não parecer familiar ao público brasileiro. Chuta o pau da barraca, Saldanha, que vai ficar do caralho!
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