Crítica: Doutor Castor

Seja lá qual for a atividade ilícita, o crime organizado tende a manter uma metodologia de centralização das principais decisões, de ramificação nas cadeias de comando e divisão hierárquica capaz de montar um quadro social que dê estrutura paras as ações, muitas vezes sustentadas pela captação de agentes públicos. A corrupção é praticamente a alma do negócio.

Na nova série Globoplay intitulada Doutor Castor, dirigida por Marco Antonio Araujo, conhecemos alguns detalhes interessantes sobre a vida de um senhor estudado, aliás, meu colega de Faculdade Nacional de Direito, que entendeu perfeitamente como seguir essas fórmulas até se tornar virtualmente inalcançável através do “inofensivo” Jogo do Bicho.

Simpatize você ou não, Castor Gonçalves de Andrade e Silva foi uma das figuras mais populares e carismáticas ao longo das décadas de setenta, oitenta e noventa num Rio de Janeiro desde sempre apaixonado por futebol e samba. Presidente de honra da Mocidade Independente de Padre Miguel e praticamente dono do Bangu Atlético Clube, o tal Dr. Castor gerenciava os seus negócios ao melhor estilo cover de poderoso chefão.

A série, dividida em quatro episódios, mostra bem alguns bastidores deste período atrelado a um Bangu quase vitorioso que viveu o seu apogeu impulsionado pelo dinheiro e pela influência do seu homem forte, se tornando uma potência do futebol nacional.

No samba não foi diferente. Depois de se tornar um dos principais responsáveis pela criação da Liga Independente Das Escolas de Samba, o que colaborou imensamente para a profissionalização do carnaval carioca na década de oitenta, Castor de Andrade levou a Mocidade aos principais títulos da sua história, ganhando pompa de herói.

Através de imagens de arquivos e repletos de depoimentos de pessoas que conviveram de perto com o famoso contraventor, os quatro episódios de uma hora permeiam essa atmosfera de malandragem suburbana e institucionalização do crime organizado de uma maneira capaz de despertar o interesse do espectador. É o famoso “suco de carioquice”.

Entre relatos de atletas, ex-funcionários, advogados, juízes, jornalistas e amigos pessoais, a história narrada de ascensão e queda de um dos maiores bicheiros de todos os tempos nos exibe uma figura excêntrica e capaz de transitar por todas as camadas da sociedade com uma habilidade inigualável.

Seja confabulando com seus capangas truculentos, flertando com a ditadura militar, almoçando com importantes dirigentes do futebol internacional ou erguido pelos braços da sua comunidade, o protagonismo das suas interações sociais parece trazer um ar de legitimidade às ações tomadas por Castor de Andrade, um ser praticamente intocável (ainda que discorde a Dra. Denise Frossard).

Ao contrário de Pablo Escobar ou Al Capone, a série induz que o bicheiro não era bem visto apenas na sua zona de atuação, no subúrbio do Rio de Janeiro, chegando a se relacionar muito bem com as famílias de presidentes da república e membros da elite da sociedade, tendo uma influência política clara e requisitada.

Um pecado da série é ficar muito preocupada com a exaltação do lado humano do seu protagonista sem adentrar, de maneiras práticas, no suposto lado perverso de um contraventor implacável. A sensação que fica é de que a luta por pontos e a guerra entre famílias rivais tenha se tornado sangrenta e acentuada apenas após o momento da sua morte. Se é isso o que a história preserva, eu não sei…

No final das contas, a Globoplay conseguiu reunir um material de qualidade e capaz de nos revelar, entre o pão, o circo e o sangue, que Castor de Andrade foi um personagem controverso e multifacetado, se tornando um dos símbolos eternos para o seu clube, para a sua escola de samba e para o seu bairro.

Uma pena que a lógica operacional responsável por financiar isso tudo continue explodindo a cabeça de uns e outros até os dias de hoje.

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