Crítica: Pole Dance: Dança do Poder (Strip Down, Rise Up)
Um aviso importante sobre esse texto é que ele poderia ser um artigo de páginas e páginas. Tenho muito a falar sobre o documentário Pole Dance: Dança do Poder (que ficou com essa tradução horrorosa) mas tentarei não ultrapassar muito o razoável pro site.
O ano era 2018. Um dia qualquer coloquei “poledance” no Google e pensei em fazer uma aula experimental. Assim, sem aparente razão, sem saber nada a respeito, sem indicação, vinda de uma vida até aquele momento sedentária. Entrei na sala usando um short de elastano colorido que muito me incomodava por teimar em enrolar nas coxas e um top amarelo escandaloso; eu me sentia ridícula. Mas não era bem (ou somente) a roupa. A sala, com uma parede de mais de 5 metros só de espelhos, por alguma razão me apequenava. Ou, ainda, deixava claro o quanto eu já me sentia minúscula fora dela – e não me refiro, de forma alguma, aos meus 1,58cm de altura. Olhar a mim mesma em um espelho, com poucas roupas, durante mais de uma hora, no meio de pessoas até então desconhecidas, fazendo uma atividade física que nunca havia tentado, era absolutamente assustador. A professora me ensinava os movimentos e eu os executava, sem jeito, envergonhada, olhando ao chão – nunca à frente. E apesar da descrição que acabo de dar, que pode soar traumatizante, não se enganem: ao sair da sala carreguei uma certeza inédita. E a certeza era de que enquanto me houvesse vitalidade, eu retornaria.
A despeito das dores, roxos e desafios da autoestima, eu voltei. E volto duas vezes por semana desde então. Não imagino minha vida sem o poledance, assim como não imagino minha vida sem terapia, mas a primeira constatação gera muito mais espanto nas pessoas. Acham exagero ou cafonice e tendem a ser reducionistas: é só uma dança ou, no mais extenso, é só uma atividade física. Pole Dance: Dança do Poder veio para mostrar que não. A princípio, conceituar a prática é um desafio por si só; afinal, suas modalidades são plurais. Não, poledance não é coisa de stripper tão somente – apesar de ter origem, sim, nas boates, e isso não ser vergonha alguma e algo que não deve ser de forma alguma apagado. Mas há também o pole classic, erotic, exotic; há também o pole fitness e o pole sport; há o pole artistic, pole theatre… falando por alto, são as que me veem à cabeça. No entanto, o que realmente torna a prática tão potente não é sua categoria: é tratar-se de um corpo em movimento e em constantes desafios, que fogem em muito só aos de força.
O poder toma ainda mais forma especialmente quando esse corpo é o da mulher – apesar da prática ser aderida cada vez mais por homens, o que é maravilhoso e coerente com a proposta subversiva que, em sua origem enquanto dança, o pole tem. “Ah mas mulher dançando sensualmente é subversivo onde?”. É muito simples: antes, durante e depois do palco, aquela mulher passa pelo processo de julgamento, reducionismo e ostracização, resultado do olhar masculino – male gaze – que orienta a sociedade. Afinal, a mulher conduzir a própria sexualidade pode agradar ao homem, que de início se encantará pela sensualidade vinda com essa condução, mas que, ao se dar conta que o volante não está em suas mãos, mudará sua visão. “Mulher minha, não”: nosso corpo quando não está a serviço do homem, e exclusivamente dele, vira crime ou é severamente repudiado.
Como bem explica Sheila Kelley, fundadora e professora do estúdio The S Factor em Los Angeles e principal figura do documentário, resta à mulher a tarefa de reivindicar o próprio corpo, uma vez que vivemos em uma configuração social que rouba, desde o nascimento enquanto mulher ou desde o momento de identificação como mulher, nós de nós mesmas. O resgate é uma tarefa longa. Sheila propõe o alcance da feminilidade orgânica que, em tese, temos, mas gosto de pensar que não se tratam de características que nascem conosco por sermos mulheres, mas que, estando nós expostas à sociedade misógina, são saqueadas rapidamente. Nossa autoestima, nossa intelectualidade, nossa legitimidade, nossa competência, nosso poder. E esse processo violento está ali, inscrito no nosso corpo, que não é só um corpo físico mas também um sistema emocional que carece de desbloqueio. Os novos três Rs: reivindicar, reabitar, ressignificar. Nesta lógica, a corporalidade leva consigo, dentro de sua própria linguagem, uma narrativa histórica que expressa tanto a vivência do indivíduo quanto a do coletivo a que ele pertence.
Quero indicar com isso, de maneira mais sofisticada, literalmente que o corpo fala. E quando se dá voz a um corpo tão castrado quanto o da mulher, é uma explosão de histórias a contar. No documentário, o que temos é isso: um transbordamento de figuras incríveis contando suas trajetórias, expostas de maneira sensível e acolhedora, compartilhando em comum o ser mulher em suas mais diversas vivências. Assuntos que atravessam o “tornar-se mulher” lá de Simone de Beauvoir são jogados à tela e, atrelados à prática do pole, vão ganhando leveza e desatando nós. O corpo se move, a mente se move também. Munida de responsabilidade afetiva, Kelley desenvolveu um trabalho quase terapêutico mas que não almeja substituir, de forma alguma, o atendimento especializado com o psicólogo, e, sim, oferecer uma zona de segurança para ser mulher, da forma que for. Assim como ela, as tantas professoras, também carregadas de histórias, inspiram e nutrem esse universo profundamente empoderador do pole dance, que vai muito além do salto alto e do glamour.
Por fim, por meio do documentário é possível compreender a catarse que o poledance traz na vida de alguém. Entro na sala de pole pequena, embebida do frasquinho do mundo e saio grande, devorados os setenta e cinco minutos de aula. Suor, exaustão, estímulo, por vezes frustração e a lição que ela traz; há dias bons e ruins. Aula após aula o processo se repete e me sinto cada vez mais próxima de mim mas, diferente de Alice, estou incrivelmente desperta.
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