Crítica: Pelé
Há mais de sessenta anos considerado o maior jogador de futebol de todos os tempos, é provável que Pelé possua um status simbólico insuperável, como não hesitava em declarar o meu saudoso vô.
Nascido no ano de 1940, Edson Arantes do Nascimento desenvolveu a magia em seus pés enquanto engraxava sapatos para colaborar com as despesas da sua família. Uma biografia que se inicia com o mesmo capítulo de milhares de brasileiros que sonham em gozar do glamour oriundo do mundo da bola.
Com dezesseis anos de idade, o Rei prodígio se torna jogador profissional do Santos e, em menos de um ano, já é convocado para a seleção brasileira principal. Aos dezessete, se sagra campeão mundial pela primeira vez, quatro anos depois repete a proeza atuando em apenas dois jogos, em 1966 sofre novamente com as lesões e em 1970 vive o seu apogeu, sagrando-se o único jogador na história a conquistar três Copas do Mundo, depois de ultrapassar a inacreditável marca dos mil gols.
No interessante documentário disponibilizado recentemente pela Netflix, Pelé nos dá acesso a um digníssimo acervo de imagens restauradas digitalmente e capazes de ilustrar os principais momentos da carreira da maior entidade do futebol mundial. As clássicas filmagens da final da Copa de 70, por exemplo, ganham um fôlego extra e entusiasmam os amantes da seleção canarinho.
Os diretores gringos Ben Nicholas e David Tryhorn ainda se esforçam para contextualizar a história de Pelé fora dos gramados, relacionando o sucesso dentro das quatro linhas e o panorama sociopolítico de um país imerso nas profundezas dos anos de chumbo.
As imagens de arquivo são intercaladas com entrevistas com jornalistas renomados, escritores, companheiros do Santos e da Seleção Brasileira, que entre brincadeiras e relatos, dão conta de nos inserir no cenário da época. Os comentários do próprio Pelé nos fazem flutuar pelas memórias do passado.
Pioneiro em quase tudo, o Rei tem outra faceta desmembrada pelo documentário: a de popstar. Atrelando o seu desempenho fenomenal dentro de campo à sua personalidade carismática e isentona, Pelé ganha rios de dinheiro promovendo todos os tipos de produtos possíveis e imagináveis. Encurralado pela força da sua marca, fica mais do que claro que ele sempre optou por se colocar acima das discussões políticas, camuflando as suas conveniências pessoais sob uma ideia de ídolo acessível e herói boa praça.
Essa falta de culhão rende, até os dias de hoje, um certo tipo de mancha na sua história, conforme relatado por diversos convidados do documentário. Segundo a maioria deles, Pelé abdicou do seu dever moral de se manifestar veementemente contra o golpe militar de 64 e optou por servir de propaganda ao regime como se não tivesse ciência de muita coisa.
Em contrapartida, esta crítica à passação de pano do Rei está sujeita a algumas ressalvas: será que Pelé, assim como tantos outros adversários políticos, teria sido boicotado ou até mesmo desaparecido misteriosamente caso tivesse se posicionado contra o sistema? A linha tênue entre a sobrevivência e a conveniência…
Ao mesmo tempo em que o regime militar se valia da Seleção de Pelé para ofuscar as intransigências e o massacre às liberdades individuais proposto em território nacional, o futebol encantador e a coleção de vitórias na Copa do México pareciam oxigenar um país que tentava se livrar, de uma vez por todas, do tal complexo de vira-latas. Pode ser que, dentro de campo, Pelé tenha conseguido o que jamais conseguiria fora dele.
Até porque, no final das contas, pro brasileiro médio, o futebol transcende quase tudo. O tal ópio do povo foi capaz de alçar um jovem preto e pobre ao patamar de Rei, símbolo de orgulho nacional e autoestima no cenário mundial. Isso tudo, em plena ditadura, não é pouca merda não… Pelé pode ter salvado algumas vidas de boca fechada.
Afinal, ele calado é um poeta.
Vida longa!
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