Crítica: Silenciadas (Akelarre)

Toda Arte é Arte do tempo presente, na mesma medida em que toda História é História do tempo presente. Os objetos, as narrativas, as produções, independente de quando se passam, refletem as necessidade do tempo de seu interlocutor e não do momento analisado histórica ou artisticamente. O belíssimo novo lançamento espanhol da Netflix, falado também em língua basca, vai até a Santa Inquisição para questionar os abusos ainda cometidos, séculos e séculos depois, contra as mulheres.

Aqui temos um grupo fortíssimo de jovens mulheres que dançam e cantam músicas antigas em seu tempo de ócio, enquanto os homens de sua aldeia saem por meses para pescar. A simples saída dos afazeres domésticos, considerado como do campo natural das mulheres, é visto como perigoso e um grupo de agentes da Inquisição, liderado pelo Juiz, aparece no local para investigar uma suposta acusação de bruxaria. Os cantos antigos e as danças no descampado feitas para nenhum homem são interpretados como uma oferenda ao Diabo (visto que, nas palavras do Juiz, só se pode bailar para os homens). Diante de “tantos” indícios (e as nossas aspas aqui sugerem a ironia de nossa fala), as meninas percebem que não terão outra saída, mas aceitar o papel da bruxaria reservado a cada qual. É nesse momento que Ana (em poderosa atuação de Amaia Aberasturi) resolve assumir a carapuça para confundir e desnudar a armadura hipócrita do Juiz.

Bruxaria ou tradição?

Se durante a Idade Média as mulheres sofriam tais investidas cruéis e pouco críveis, atualmente os papéis colocados ao grupo tomam nova forma, mas de conteúdo muito pouco diferente. Se lá a fogueira já era bem presente para aquelas que tentavam fugir ao paradigma aprisionante, hoje o fogo pós-moderno ainda queima. Entre os séculos XVII e XVIII, a iluminista inglesa Mary Astell denunciava os grilhões confeccionados exclusivamente para as mulheres, questionando semelhantemente a Rousseau, mas indo tão mais longe: “Se os homens nascem livres, por que as mulheres nascem escravas?”. É acerca dessa escravidão que Pablo Agüero, em sua firme direção, conduz o espectador e suas protagonistas. “O Diabo não tentaria nos seduzir na figura de uma velha como esta, mas na beleza da juventude que nos faria realizar qualquer coisa”, declara o Juiz diante do encanto de Ana. Ela, astuta e perspicaz, vai conseguindo tragar o velho inquisidor, que está ali mais pelos desejos carnais de prazer e dominação do que pela realização de uma obra tida como religiosa. Os personagens de Silenciadas encarnam com vigor os estereótipos do mundo de hoje, de ontem e de sempre.

O orçamento (estimado em menos de três milhões de euros) não se apresenta como limitador da criatividade do excelente diretor Pablo Agüero. A realização feita como muito esmero e delicadeza encontra vazão em um roteiro preciso ao extremo, em atuações muito bem lapidadas e em uma fotografia que cria e mantém o clima necessário para que a imagem em movimento tenha tanto poder quanto a narrativa construída. O envolvimento alcançado ora pelo silêncio das silenciadas, ora por sua cantoria ou pela troca de diálogos recheados de armadilhas, de um ou de outro lado, se apresentam como o elemento que traz o refino à obra. Tudo ali é equilibradíssimo, minuciosamente pensado e perfeitamente encaixado. É uma obra que alcança seu poder pelos detalhes e não por uma desnecessária eloquência que poderia sugerir militância por militância. E, por isso, o status da realização atinge níveis muito maiores e mais poderosos.

Religiosidade ou dominação?

Mistério, drama, suspense, História e um quê de terror são os alicerces produzidos para uma obra social marcante, que revisita séculos passados para ressignificar seus símbolos em um tempo presente, marcado pela inércia histórica que o ser humano insiste em replicar a cada era. O silêncio está aludido tão somente no título do filme, porque o seu grito é dado a cada frame, denunciando a falta de vontade de caminhar para frente. Silenciadas, portanto, é necessário, sincero e definitivamente tocante.

Nada que aqui mora muda / Inércia, Não há vontade de se mexer / Inércia, Tudo é uma parede / Inércia, a História te deixa morrer” (Bruce Dickinson)

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