Crítica: Fuja (Run)
Nas minhas breves considerações de leigo, devaneando pelo Google, cheguei a encontrar três tipos principais da Síndrome de Munchausen. A mais leve é aquela em que um indivíduo supervaloriza determinada situação para chamar atenção dos demais e se tornar foco dos cuidados desses. Um nível acima é quando a pessoa se auto-inflige algum tipo de ação para que a situação de fato ocorra e ela consiga a mesma atenção e cuidados de terceiros: isto é, tomar alguma substância, quebrar algum osso, tomar qualquer atitude que a ponha em estado de fraqueza para ser zelada. E a terceira – a meu ver, a pior de todas – é a Munchausen por procuração: quando alguém imputa arbitrariamente tal situação a outrem para que este necessite do apreço do perpetrador. O novo thriller psicológico da Netflix, Fuja, foca no clássico exemplo desta terceira forma.
Diane (em sinistra atuação da boa atriz Sarah Paulson) é uma mãe superprotetora, que vive em uma pacata cidade com sua filha adolescente Chloe (Kiera Allen). A menina é uma sobrevivente de um parto bastante frágil, que a deixou com sequelas: manchas pelo corpo, asma, paralisia da cintura para baixo. No entanto, a garota é uma lutadora e agora, prestes a se formar no colégio, busca incessantemente ser aceita em uma boa Universidade. Diane, sua mãe, sempre fizera de tudo para ela e por ela e agora se vê – apesar de negar aos conterrâneos – naquele instante em que a filha irá para longe para viver uma vida independente e sem qualquer tipo de controle por parte da progenitora. Mas é diante desse contexto que Chloe começa a desconfiar de toda a sua rotina ao longo dos anos: estaria Diane produzindo essa situação a ela de forma que essa debilidade jamais fora real, mas uma perpetração de sua própria protetora?
Fuja – e a sugestão é clara no título, tanto no original “Run“, quanto na tradução – vai envolvendo seu espectador em uma trama introspectiva que não vai muito além da prisão de sua própria casa e cadeira de roda às quais Chloe está confinada desde a nascença. Vencendo tais limitações, a menina terá que travar uma batalha mental cheia de artimanhas e estratégias para driblar uma mente insana travestida de bondade e altruísmo. É claro que o filme aborda o extremo máximo de uma dependência emocional e psicológica entre pessoas, mas muitos relacionamentos (e não tão somente aqueles que envolvem os laços naturais da família) são calabouços e labirintos que escondem em seus longos corredores obscuros muitos elementos semelhantes aos de Munchausen. Quando o desejo por alguém cria tentáculos poderosos prontos a sufocarem o próximo, é o momento em que o monstro é liberto. Em determinado ponto, aquela que carrega em si a encarnação humana do amor incondicional se torna uma vilã sombria a ser batida. Aqui, atentar contra a própria vida, para Chloe, passa a ser a maior ameaça a se fazer à vida de sua algoz que confunde amor com obsessão.
A direção é firme e nos coloca vidrados em cada sequência, sem titubear, sem deslizar naquilo que se propõe. Um relato forte de sobrevivência e reconstrução. Mas o título também flerta com outras sensações além dessa única: o ressurgimento de alguém diante dos escombros emocionais por aquilo que descobrirá (e o que Chloe vai desvendar é muito maior do que esta ponta de iceberg); bem como um flerte supremo e inimaginável com a vingança. A conclusão – e não estou a sugerir qualquer tipo de spoiler aqui – nos deixa uma vontade de uma continuação, mas para um outro foco narrativo: a boa e velha máxima de que o sonho de todo prisioneiro jamais será a liberdade, mas se tornar o carcereiro. E nisso, a obra de Aneesh Chaganty acerta em cheio, criando sensações que permanecem e se desenvolvem à medida em que os créditos aparecem e desaparecem em tela.
Fuja, portanto, é um thriller psicológico que cumpre com sua proposta. Mergulhando determinado nas situações pelas quais passam os prisioneiros das obsessões de outrem, o filme aprisiona igualmente seu espectador, fazendo-o seguir, cena após cena, as tentativas de liberdade. As consequências dos traumas são deixadas para que nós completemos enquanto lacunas, mas apresentando um caminho muito bem delineado para que nossa imaginação consiga realizar seu trabalho. Os principais sentimentos da humanidade aqui são considerados em suas condições de reféns do sentimento, talvez, mais imperativo em relação aos demais: o desejo.
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