Crítica: Sombra e Ossos (Shadow and Bone) - 1a Temporada
Sabe quando você se senta pra assistir alguma coisa só pra passar o tempo sem absolutamente nenhuma expectativa? Pois é. Sombra e Ossos, lançamento de sexta-feira na Netflix, foi assim. Eu não sei absolutamente nada sobre o livro (até semana passada sequer sabia que havia um livro que inspirou a série) e não tenho nenhuma outra referência para a história além da própria série. Talvez tenha sido exatamente isso que me agradou tanto nessa história de fantasia visivelmente voltada pra um público feminino adolescente, bem na direção de “Jogos Vorazes” e “Divergente”. Diferente desses, Sombra e Ossos não se passa em algum futuro fictício e talvez mais ainda por isso entrar na história tenha sido tão fácil pra mim.
Estamos em um mundo não muito diferente do leste europeu de fins do século 19 em um país chamado Ravka, que se assemelha muito a uma Rússia czarista. Todos os elementos estão lá: os cossacos, as roupas pesadas com peles e veludos, uma religião com muitas superstições e muitos santos, textos em um alfabeto que se assemelha ao cirílico, nomes de pessoas e lugares que poderiam muito bem existir nos Bálcãs. Ravka, além de estar em guerra com Fjerda, ao norte (uma clara referencia a Fjord, ou seja, Escandinávia) e com Shu Han, ao sul (alguém perdeu a dica de que é algo mazomeno parecido com a China?) se aproxima de uma guerra civil, quando um general do oeste planeja uma revolução contra o rei.
Não bastassem todos os esforços de guerra, há, bem no meio do país, uma muralha de sombra chamada “A Dobra” que divide o país no meio. Qualquer comunicação entre o lado leste e oeste se faz através da Dobra que, além de ser um deserto sob uma nuvem escura de relâmpagos, é habitada por criaturas aladas monstruosas prontas a atacar qualquer viajante. É dito que a tal “Dobra” foi criada por uma figura lendária chamada “O Herege Negro”, um Grisha (pessoas com poderes sobrenaturais) que foi corrompido pela própria ambição. Tais Grisha, apesar de serem empregados como soldados na guerra, são vistos com grande preconceito pelo restante da população.
Nossa heroína se chama Alina Starkov (Jessie Mei Li), uma moça orfã com traços asiáticos que sofreu bullying por se parecer com os inimigos de Shu. Alina é uma cartógrafa do exército, com uma amizade muito pouco platônica com o tenente Mal Oretsev (Archie Renaux), que cresceu no mesmo orfanato que ela e ao lado de quem passou praticamente toda a vida. É óbvio que Alina vai descobrir que é uma Grisha e, não apenas isso, que ela é a chave para resolver todos os problemas do mundo (como poderia ser diferente num livro de fantasia adolescente?). Após tal descoberta, ela atrai a atenção do temido General Kirigan (Ben Barnes), líder da tropa Grisha – moreno, alto, bonito e sensual – e que, evidentemente, vai se tornar uma pedra no sapato do pobre Mal. Eu sei, previsível. E olha que não é o pior clichê romântico da série!
Só que… cola. Tudo na série dá margem pra que esse tipo de narrativa pareça plausível. Ela é visivelmente pra adolescente mas em momento nenhum exclui o público mais maduro, dando dicas de que o mundo é muito mais pesado, tosco e bruto. Um “Game of Thrones” ou “The Witcher” com suas intrigas, traições, sexo e violência sem mostrar estupros, tripas e nudez excessiva. Há momentos engraçados sem que haja aquele alívio cômico pastelão, há umas cabeças decepadas sem que os órgãos internos voem na câmera, tem até bundinha e peito forte cabeludo de fora, mas nada que vá gerar a fúria dos mais conservadores.
A série é rica em personagens secundários que, segundo descobri nas interwebs, não são oriundos dos livros originais – chamados “A Trilogia Grisha” – mas de um spin off chamado “Six of Crows”. Esses personagens – Kaz, o sisudo dono de um bar na cidade de Ketterdam; Inej, uma escrava-prostituta ninja que fica invisível, arremessa facas e é foda bagarai; e Jasper, um pistoleiro vaidoso que aparentemente nunca erra um tiro – e a maneira com que suas ações interferem na trama principal fazem com que a história fique tão amarradinha e tão rica de pequenos detalhes divertidos e mirabolantes (e mentirosos pra porra!) que eu assistiria à série mesmo que ela fosse só sobre eles. São o tipo exato de personagem que eu criaria pra uma aventura minha de RPG e que fazem com que cada novo passo da trama se torne leve e instigante.
Não bastasse isso, os atores foram escolhidos a dedo, cada um trazendo pequenos cacoetes estilísticos pra série – Jessie Mei Li como Alina com um vocabulário enorme de olhares chorosos e pidões, Archie Renaux como Mel, o guri bonzinho que teve que virar brucutu pra sobreviver num mundo tosco e que tem aquela cara exata de paladino burro, pronto pra se sacrificar por sua mocinha, Freddy Carter como Kaz tem um rosto e um olhar que passa, ao mesmo tempo, raiva e frieza, e que parece estar sempre planejando a próxima reviravolta, Kit Young como Jasper tem o sorriso maroto do pistoleiro salafrário, pronto pra atirar primeiro, que deixaria Han Solo orgulhoso, e Amita Suma dá a Inej o peso de alguém que já se sofreu mais do que uma pessoa é capaz de sofrer e não quer jamais retornar à prostituição. Fechando a lista (que poderia se estender ainda mais, pois há tantos personagens secundários memoráveis que eu poderia passar páginas e páginas falando de cada um deles) está Ben Barnes (o príncipe Caspian de Nárnia, O Retrato de Dorian Gray, Billy Russo da série O Justiceiro, e vários outros papéis bacanas) como o General Kirigan, com aquele ar aristocrático, experiente e sedutor de “Homem da Capa Preta”.
A série tem tudo que se pode querer pra uma maratona de fim-de-semana: cenários bacanas, indumentária, cenografia e efeitos impecáveis, magia, monstro, porradaria, aquela coisa bobinha mas gostosa de história coming of age de livro adolescente, com a tensão sexual mal resolvida entre Alina e Mal, ou a figura do General Kirigan tentando (mas fingindo não tentar) arrebatar o coração da moça, e um universo criado com tantas nuances e detalhes que me senti frustrado quando percebi que só haviam 8 episódios e não os costumeiros 10. A julgar pela repercussão, teremos mais temporadas e que bom! Aguardarei com gosto.
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