Crítica: E Amanhã... O Mundo Todo (Und morgen die ganze Welt)
Há na Alemanha uma lei muito semelhante a uma lei brasileira (e acredito que comum a todo o mundo democrático) que ao cidadão é dado o direito de resistir contra todo aquele que tenta subverter a ordem democrática do país. Diferente de lá, porém, aqui temos um grupo do alto governo que declara, com toda clareza em detrimento de entrelinhas, aos quatro ventos que, caso não seja feito do jeito que esse determinado grupo deseja (e não o que o povo anela), poderá haver um golpe de Estado. E – nisso reside a diferença para com os germânicos – aqui ninguém faz algo em relação a isso; qualquer coisa que seja. Ouvem como se fosse piada ou força de expressão. Ou qualquer coisa que não leve a nada. Mas não estamos aqui para falar de Brasil e sim da Alemanha refletida em sua nova produção lançada pela Netflix: E Amanhã… O Mundo Todo.
Seguimos os passos de Luisa (Mala Emde), uma estudante de direito, de origem abastada, que tem em seus pais bons entendedores dos caminhos políticos que resolve seguir. Apesar do conforto do berço de ouro, Luisa decide viver em uma espécie de base esquerdista, onde todos ajudam para o bem coletivo e tem como princípio agir – a priori pacificamente – contra a ascensão de grupos de extrema direita apoiadores de políticos com vertentes preconceituosas a imigrantes em seus discursos rasos, infantis e cruéis. No entanto, ela se vê cada vez mais inserida no grupo e aceitando caminhos um tanto mais radicais. Até o momento em que o radicalismo passa a ser uma conduta própria a incentivar os demais.
O filme, portanto, chega em momento deveras oportuno, pois a polarização política em que somos sugados diariamente não é um fato isolado do Brasil, sendo observada nos principais países do globo. Como que em uma reedição da Guerra Fria, com tons de farsa absoluta e forçadas de barra que chegam a doer, o que estamos a contemplar nesse embate violento de posições extremadas é um show de horrores de cada um dos lados: direitistas que veem Comunismo até no Papa e na Netflix (sim, esse negócio que gera bilhões anualmente já foi denunciado de esquerdismo nesses comentários loucos das redes sociais, que democratizam a insanidade de todos); esquerdistas que bradam contra o autoritarismo da Direita, agindo de forma tão ou mais arbitrária do que seus adversários. Uma falta de coerência narrativa em ambos os lados dão a esta polarização política tons de absoluto desvario. Uma coisa tosca de se ver e acompanhar. Uma vontade enorme de pedir para ir para Marte ou até Plutão, curtir um frio gostoso e mais agradável do que o frenesi coletivo e caótico atual. O filme alemão retrata isso muito bem, levando-nos a acompanhar essas mudanças e debates internos do grupo, que vão se assemelhando aos seus inimigos. Tendemos a nos tornar, em parte, aquilo que mais odiamos.
Apesar de ter um grande material a ser aproveitado e de extrema urgência para o mundo de hoje, a narrativa de E Amanhã… O Mundo Todo peca em seu foco. Ele se perde entre o romance de Luisa com um dos principais porta-vozes do radicalismo esquerdista daquele grupo e a verdadeira e honesta discussão acerca do que a política ocidental tem se tornado. Cito dois outros conterrâneos que tratam de temas semelhantes: “Adeus, Lenin!” e “Edukators”, duas obras impecáveis e maravilhosas, que conseguem estabelecer uma relação sincera e delicada entre o conto que estão a narrar e as discussões necessárias a que esses assuntos levam. Mas o mesmo não ocorre na nova produção Netflix. O que se percebe ao longo das 1h51min de sequências é muito mais as ações do grupo, sem grande debates ou aprofundamentos, e esse romance que não chove nem molha. É óbvio que há uma narrativa construída e que se desenvolve e conclui, mas que deixa muito a desejar naquilo que poderia ter sido, considerando o que tinha à disposição de seus realizadores em termos de possibilidades. Sem se decidir, ele fica meio perdido entre as várias expectativas que poderia aproveitar.
Ficamos, então, à mercê dessas idas e vindas da narrativa. Do que poderia ter sido, mas não é. Mas também daquilo que estimula em termos de debate. Isto é, ainda que o próprio filme não enverede por grandes discussões, mas somente apresente alguns tópicos sobre os temas, cabe a nós, espectadores, após a conclusão da obra realizar tais debates baseados, também, naquilo que vimos de seus protagonistas. Podemos e devemos exercer este papel de personagem principal, não dependendo tão somente do que a realização de Julia von Heinz nos apresentou. Mas fica a importância daquilo que está posto na tela: quando nos colocamos em extremos tão grandes, encontramo-nos do outro lado, sendo semelhante demais àquilo ao que nos opusemos.
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