Crítica: Sem Remorso (Tom Clancy's Without Remorse)
Além de ser autor de uma das citações que eu mais gosto – “A diferença entre ficção e realidade? A ficção tem que fazer sentido.” -, Tom Clancy é também um nome absolutamente único na história do entretenimento mundial. Outros autores, como Stephen King, também têm uma grife enorme e conseguem vender seus livros com facilidade e trazer muita gente para assistir filmes, séries e seja lá o que for que seja adaptado de suas obras. Tom Clancy, contudo, é o único cujo próprio nome virou uma marca registrada que vai em muitas de suas obras adaptadas ao Cinema, televisão e até aos videogames. Para se ter uma ideia, quatro das maiores franquias de videogame de todos os tempos têm em seu próprio título o nome de Tom Clancy – Tom Clancy’s Splinter Cell, Rainbow Six, Ghost Recon e The Division. O mesmo acontece aqui com a mais nova superprodução da Amazon Prime Video, Sem Remorso, baseada diretamente no romance homônimo.
O poder que o nome de Tom Clancy tem é o de dizer ao espectador que ele está prestes a ler, ouvir, jogar ou assistir, dependendo de qual mídia em que ele vai consumir o verdadeiro produto que se tornou Tom Clancy, alguma coisa sobre espionagem, CIA, black ops, superpotências se engalfinhando nas sombras, agentes secretos, guerra e, enfim, tudo aquilo que enche um bom prato. Mais uma vez, Sem Remorso traz exatamente a mesma coisa, apresentando aqui o personagem John Clark (aqui chamado John Kelly e vivido de forma inexplicavelmente inconsistente pelo bom Michael B. Jordan), um dos grandes personagens recorrentes do que se convencionou chamar Ryanverso, que é o universo de histórias protagonizadas pelo analista da CIA e eventual agente de campo Jack Ryan, um personagem tão icônico que já foi vivido no cinema e TV por gente como Harrison Ford, Ben Affleck, dentre outros.
O que eu quero dizer, meus amigos, é que o ter o nome Tom Clancy no título de um filme traz consigo muita responsabilidade e uma expectativa enorme de que uma trama bem urdida, bem conduzida e de tensão lancinante será entregue. Foi esse o caso com todos os cinco filmes adaptados para o cinema e é também com a série, também original da Amazon Prime, Jack Ryan. Contudo, infelizmente não é o caso com Sem Remorso, muito embora o longa tenha muitas qualidades.
Começamos acompanhando uma operação do time do navy seal John Kelly ordenada pela CIA em algum lugar na Síria. Lá chegando, Kelly e seu time percebem que quem eles foram ali para matar não aquela pessoa marrom de sempre que fala um “Alá” a cada segundo, mas, sim, russos e aí, meu amigo, o cu do americano já começa dar aquela fechada. A operação, contudo, é um sucesso, mas algum tempo depois, já em solo americano vivendo a tão proclamada liberdade pela qual ele lutou na Síria (?) em uma mansão que não faz sentido algum um militar ter, Kelly é atacado por agentes russos, que matam a sua esposa grávida enquanto dorme, mas não contavam que Kelly não estaria na mesma cama, mas ouvindo música em um laptop que desliga quando cortam a luz da casa (?) na sala .
Enfim, resumidamente, aquela operação que parecia cagada desde o início realmente o estava e outros membros da equipe foram mortos. E aqui vem um grande acerto e erro do longa na construção do personagem de Michael B. Jordan, pois com o assassinato de sua esposa ele se torna um ser a quem nada além da vingança importa. E isso é legal pois o leva a estar real e literalmente disposto a morrer, como se a vingança fosse a única coisa que o mantivesse vivo. Mas é ruim porque a coisa vai a um extremo tal que ter empatia pelo personagem se torna algo desafiador em alguns momentos, em especial dado o que acontece ao final do filme que obviamente não revelarei aqui.
Kelly não tem problema algum em punir impiedosamente os vilões malvadões do filme, até aí tudo bem, mas ele também não tem qualquer problema de consciência ao matar de forma horrorosa o motorista de um diplomata e massacrar algumas dezenas de russos na melhor cena de ação do longa em um prédio qualquer na Rússia. Explico: o tal motorista é só um cara que tá dirigindo um carro e, na cena do prédio, embora haja pessoas que ele mate que efetivamente estavam metidas na conspiração que vamos desvendando ao longo do filme, o que se justifica dentro da lógica de qualquer obra, há também várias outras que ele mata realmente sem remorso nenhum, fazendo jus ao no do do filme. Em momento algum depois de promover uma chacina de policiais e provavelmente matar até mesmo civis Kelly se mostra consternado por este fato. Ir a esse extremo tira a empatia, mas também oferece diálogos perturbadores de um cara que mostra a cada oportunidade o quanto ele não tem absolutamente nada a perder e está disposto a fazer qualquer coisa para alcançar seu objetivo de vingança.
Para além disso, Sem Remorso tem uma condução que se preocupa demais com a ação, deixando o mistério e a tensão de lado. O roteiro parece não se preocupar em trazer ao espectador qualquer coisa que não a sensação de estupefato com a ação. Sendo bem honesto, temos aqui 3 cenas longas de ação, uma gigante (a do prédio de que já falei) e uma meia dúzia de conversas entre os personagens que, talvez por justamente não ter tempo para tecer melhor uma trama conspiratória de mistério, meio que entrega a paçoca lá pelo meio das quase duas horas de exibição do filme.
A ação, entretanto, é toda muito bem coreografada e executada, brilhando na maior parte do tempo, mas que por vezes traz execuções e soluções que parecem estar ali só para mostrar o que a equipe técnica era capaz de fazer. Dito isso, ainda que feita com esmero e qualidade, a ação não traz lá nada de novo e é só mais do mesmo sendo bem executado, com vários clichês do gênero acontecendo como o do herói capaz de matar algo em torno de 735 pessoas usando só uma mão e mancando de uma perna.
Toda essa preocupação com a ação não existiu com as atuações. À exceção do sempre excelente Brett Gelman (aquele cara que você já viu mas não sabe onde), todo o elenco está abaixo do que costuma entregar, começando pelo normalmente bom Guy Pearce como um secretário de defesa que faz caras e bocas de modelo de instagram e terminando em Michael B. Jordan, capaz de atuações memoráveis em outros filmes de grande orçamento como o Kilmonger de “Pantera Negra” e Adonis Creed na franquia “Creed”, que aqui parece ter feito uma escolha ineficaz para tentar construir um personagem perturbado pela morte de sua esposa prenhe, uma vez que parece tentar mostrar um torpor próprio do luto, mas que acaba parecendo uma pessoa que tá meio de saco cheio tão somente.
Em suma, Sem Remorso não é uma produção ruim. Consegue entreter o espectador com toda a ação que traz, mas faltou uma construção melhor de roteiro para que a trama de conspiração pudesse explorar melhor todo o seu potencial, que acaba sendo realmente abordado somente em um diálogo mais para o final do filme.
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